A primeira coisa que o impressionou foi que os mortos pudessem ressuscitar. Estavam ali no caixão, rodeados por flores, e de repente apareciam em fotografias pintadas com os olhos abertos, para serem pendurados vivos. O historiador alemão Titus Riedl, que em 1994 veio morar no Brasil, mais especificamente no Crato, interior do Ceará, resolveu estudar essas imagens, para mostrar que fotos podem ser mais que verossímeis.
Lembra do caso de uma viúva que recebeu a visita de um desses artistas. A mulher lhe conta que não tem foto junto com o marido, e ele pergunta se não há um 3x4 da identidade que seja, ou da carteira de trabalho. E aí, de repente, está a senhora de 80 anos ao lado de um homem com 19. “Quando você vê a fotopintura, tem 60 anos às vezes no meio deles. Você acha que é o neto. Mas não, era o marido”.
Pressentindo que essas imagens desapareceriam com o tempo, Titus decidiu, mais que pesquisá-las, guardá-las. Essas de mortos-vivos, mas também dos vivos-vivos. É hoje o maior colecionador de fotopinturas no Brasil. Tem “na faixa” de cinco mil delas. Uma pequena parte do acervo foi exposta no final de semana passado em Salvador. Um monte de rostos anônimos, mas tão familiares, mirava quem subia ou descia os degraus da escadaria da Igreja do Passo.
A mostra integrou o Festival Transatlântico de Fotografia, promovido pelo Instituto Mario Cravo. Titus também palestrou no evento, falando sobre a tradição dos retratos pintados do Nordeste. Quem é que nunca viu, numa casinha pelo interior, uma foto dessas penduradas na parede? Meus avós têm umas, os seus também devem ter.
Nobreza
Era quando a pobreza tornava-se nobre. “Antigamente, era praticamente a única referência visual que existia dentro das casas. As imagens transmitiam uma autoridade, mostrava quem eram os donos. Hoje as pessoas fazem fotos com chifre, sorriem, tem sempre uma gaiatice, e ali não. Era sério, sereno. Envolvia um ritual de mudar de roupa, pagar pela foto. Tinha de dar certo”.
Às vezes, acontece de algum retratado querer dar as fotopinturas para Titus, sabendo que ele é tão interessado nelas, mas ele não aceita. Construiu sua coleção nas visitas que fazia aos locais onde os artistas trabalhavam, com cópias rejeitadas pelos clientes. “Eram telas com algum defeito, fungo, mancha, ou as pessoas queriam alterar a imagem. Tirar uma figura, botar outra... Comecei a comprar nas oficinas o que eles iam jogar fora. Outras estavam abandonadas há anos pelos vendedores”.
Hoje, as fotopinturas estão praticamente extintas, diz Titus. Em meados da década de 1990, quando ele passou a reunir os retratos, os pintores já tinham dificuldades de conseguir papel fotográfico e materiais de pintura.
Nos anos 2000, passaram a trabalhar no computador. Titus não gosta muito dessas digitalizadas. Primeiro, porque não duram – no máximo dois, três anos – e, depois, porque perdem o cuidado do fazer manual e uma certa “ingenuidade”. “Ainda dá para fazer fotopintura, mas já pagando muito”.
Os fotógrafos-pintores viajavam o Nordeste produzindo imagens, por isso a coleção de Titus tem obras de vários estados, inclusive da Bahia. Também há retratos pintados similares aos feitos aqui em outras regiões do país e no exterior, em países como Argentina, Uruguai, México. Mais para o sul, elas vão ficando mais elaboradas, conta Titus, mas por isso mesmo “menos legais”, na visão do pesquisador.
Ele já expôs sua coleção nos Estados Unidos, México, São Paulo, Ceará e também aqui em Salvador, em 2007. Viajaram mais que seus donos ali retratados. É como se ganhassem olhos para ver um mundo novo, apartados da casa onde viveram.