Blog do Ribondi- Uma coisa que aprendi com ele

14/06/2011 10:30

Uma coisa que aprendi com ele

 



O meu cachorro Negão, que, quando não está encardido, é todo branco, e mede 1,75m em pé, o que basta para que passe a língua na ponta do meu nariz sem grandes esforços, tem alguns medos. E é incapaz de negociar, já que faz questão de deixar bem claro que medo é medo, e que ser adulto não significa desmerecer o que grudou à personalidade desde os primeiros meses de vida.

Ele tem medo de cachorro pequeno, destes bem miudinhos, que levam a vida como bibelô. Quando eles latem irritantemente fino, várias vezes, o meu Negão recolhe as orelhas, guarda o rabo e se esconde, inteiro, atrás das minhas pernas. Talvez por tique nervoso, lambe o próprio focinho várias vezes, o que serve para mostrar a angústia que está sentindo no momento do cruel ataque do cachorrinho, que costuma vir com laços nas orelhas ou no alto da cabeça.

Tem medo, ou seria melhor dizer pânico, do barulho dos plásticos ao vento. E nisso é irredutível: não entra em carro que tenha, solto no banco traseiro ou dianteiro, alguma sacola de supermercado, não anda do lado do meu corpo onde estiver a mão que carrega compras de padaria e mercearia e, principalmente, se arrepia até os confins do rabo quando vê imensos sacos de lixo deixados na calçada à espera do caminhão de lixo.

Também se assusta com pessoas, qualquer uma, que se aproximar com alguma coisa, qualquer coisa, na cabeça. Pode ser chapéu, boné, filho novinho levado no cangote do pai, vendedor ambulante que carregue espelhos, cestos de vime, trouxas de artesanato.

Estes medos são coisas dele e eu respeito. Também respeito os faniquitos dos amigos humanos quando gritam diante de baratas ou ratos, que, a bem da verdade, são bichos que não me provocam nada – nem asco. Compreendo (sem esconder um certo risinho, é bom que se saiba) quem tem pavor a túneis, barcos em mar aberto, trovões e relâmpagos, assim como espero que compreendam o pânico primordial que se instala no meu corpo quando tenho que me sentar numa poltrona que, depois, levanta vôo e cruza os oceanos.

Mas, às vezes, acontece que o meu Negão não mostra medo. Mostra, pelo contrário, desagrado e certa revolta. Sei disso porque os pêlos da nuca se arrepiam, ele dá dois passos para trás e se coloca em posição de ataque. Já tentei convencer o meu cachorro de que não gostar de uma ou outra pessoa é contingência da vida em sociedade, mas que, por isso mesmo, é preciso uma certa diplomacia e um bom fingimento sobre estar tudo bem. Ele discorda. É sincero e espontâneo demais.

Na padaria onde gosto de tomar o café da manhã nos domingos, depois de uma longa caminhada a dois, veio, uma vez, uma moça loira fazer afagos no Negão. Chamego é coisa que ele nunca recusa, mas, desta vez, notei, logo na primeira aproximação, que os arrepios do pêlo da nuca tinham começado.

A moça bonita e loira falou:

-Mas que cachorro bonitão, meu Deus do céu.

Que ele é bonito, eu sei. Todo mundo sabe e quem não percebe isso é insensível e insensato. Ou incapaz de se enternecer com as belezas que a vida oferece. Pelo tom de voz da moça bonita, vi que era um travesti: uma voz que nasceu para ser rouca e que, a custa de alguma esforço, se afinou com falsidade e, por isso, ficou mais bamba na boca do que dentadura de dentista ruim.

Ele latiu. Achei estranha a reação porque, com toda a sinceridade, não criei um cachorro para ter rejeição à vida íntima das pessoas. A moça ainda insistiu um pouco e quis se aproximar mais. O meu Negão se levantou, mostrou que era alto, e latiu de jeito bem grosso, que é um latido que ele reserva para situações extremas.

A moça então, com um sorriso gentil, doce e compreensivo, me contou:

-Não é culpa dele, sabe? É que sou alcoólatra.

E me olhou. Eu olhei também e alguma coisa, tão frágil e imperceptível quanto o sereno do começo das noites, me convenceu que ela, apesar de bonita, já tinha se acostumado a ser evitada e pouco amada. A moça, então, ficou parada ali, em pé, na frente do Negão. Tudo nela queria fazer carinho nele e tudo nele queria evitar o que devia tresandar a bebidas. Ela pedia carinho, de quem fosse: meu, do meu cachorro, das outras pessoas na padaria. Sabia sorrir, mas era sorriso vazio, solitário, perdido.

Acariciei a nuca do meu Negão. Ele se acalmou. Pouco a pouco a moça bonita chegou mais perto. O meu cachorro ainda relutou um pouco, mudou de posição algumas vezes, lambeu o focinho, que é coisa que faz quando está ansioso. Mas, depois, de mansinho, deixou que a mão dela tocasse o pêlo branco dele.

E foi bem ali, naquele momento quase banal em varanda de padaria, que compreendi mais ainda o que tenho tentado compreender há anos. Que é também com a sinceridade das nossas próprias mazelas, amarguras, infelicidades, azares, que a gente ganha e merece afeto, carinho e doçura.

Ele não desejou nem quis que ela deixasse de ter o cheiro das bebidas. Fechou os olhos cor de mel e aceitou o afago. Esta capacidade de ser bom e de amar a pessoa exatamente como ela se apresenta é o que estou aprendendo com o meu Negão.
 

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