atualizado 18/11/2018 22:00
Há um árvore que perfuma a entrada da casa sem muros de Nicolas Behr e da musa-amada Alcina. Como uma criança que deseja exibir o brinquedo singular, ele puxa o visitante pelo braço e leva-o ao jardim. Colhe uma flor aparentemente sem exuberância e pede que a esfregue levemente entre as mãos. Uma fragrância feminina e irresistível explode entre os dedos.
“Não reconhece? Chanel número cinco, meu caro. Coloco, às vezes, dentro no carro e o calor da seca espalha esse perfume”, diz.
Aos 60 anos, comemorados bem amiúde, Nicolas Behr transpira esse frescor de menino buliçoso da Terra do Nunca. Recentemente, alguém que desconhece por completo a sua natureza erê cometeu uma gafe em escala monumental: convidou-o para dissertar sobre o despertar da terceira idade.
“Ah, fiquei chateado. Tomei um susto. Terceira idade? Imagina, a minha alma tem 18, 19, 20 anos, no máximo.”
Basta um pouco de evolução astral para transcender a imagem corpórea de Nicolas seis ponto zero e ficar diante da sua fotografia espiritual. Está lá, quase intacto, aquele moço loiro, magro, alto, de cabelos longos e bolsa de couro. Quem medita é ainda capaz de visualizar a sua áurea em tom lilás. Aliás, foi esse ser esguio que desvirginou Brasília, numa noite de seca de 1977, sob a lua cheia, numa superquadra da qual ninguém se lembra da bendita sigla.
Reza a lenda que, naquela histórica madrugada, quando o poeta lançou o primeiro livro (Iogurte com Farinha), a moçoila de 17 anos, vigiada e sitiada pelo poder de botinas, gozou desvairadamente pela primeira vez.
Quem passava pelo Eixo Monumental, Eixão e Eixinhos a ouviu gritar, nua e esparramada pela grama:
“SQS ou SOS?”
Depois, a cidade-mulher beijou ardentemente a boca do amante, um marginal de poemas mimeografados, forasteiro do mato e deliciosamente o genro que JK não pediu a Deus.
Quando minha veia
poética estourou
ela virou pra mim
e disse
ah, deixa sangrar
Vindo aos 14 anos (em 1974) da paisagem bucólica de Cuiabá (MT), onde catava pedras de quartzo nas redondezas da cidade e sonhava em ser geólogo, Nick, nome-carinho de família, arregalou os olhos diante do vazio imenso que via da janela do quarto. Faltava verde, sobrava horizonte.
Senhores turistas
eu gostaria
de frisar
que nestes blocos
de apartamentos
moram inclusive
pessoas normais
Foi diante dessa perplexidade que o andarilho-poeta se debruçou com um olhar torto para a cidade-musa desejada e paparicada por suas retas quase infinitas e curvas mais que perfeitas. Em vez de enchê-la de paparicos baratos, confrontou-a com raras palavras.
L2 é pouco
W3 é demais
quando estou
Muito triste
pego o
grande circular
e vou passear
de mãos dados
com o banco
Nicolas Behr chega aos 60 fazendo o que poucos poetas conseguiram em vida. É lido, relido, falado, imprimido, discutido, pesquisado, escaneado, postado, espalhado, compartilhado, homenageado e viralizado. Virou livro, filme, tema de aula, objeto de tese, de redação. Se ainda existisse o mimeógrafo, seria copiadíssimo.
“Não sou o maior poeta desta cidade. Talvez, o mais lido. O maior deles tem nome: atende por Chico Alvim e é meu amigo desde 1977.”
Nicolas está sempre dando uma rasteiro no seu ego. Adora falar das porradas que levou nesse tempo de se achar o Poeta. Três foram marcantes:
1) Num debate com o mestre Cassiano Nunes, na UnB, um dos alunos presentes chamou-o num canto e murmurou: “Falta poesia em sua poesia”;
2) Certa vez, Nicolas teve a ideia de criar poesias-paródias em cima da obra de Carlos Drummond de Andrade. Fez o trabalho, tomou coragem e ligou para o poeta. Ao telefone, leu empolgado o que saiu de sua inspiração. Do outro lado da linha, o criador dos originais ouviu silenciosamente tudo e sentenciou: “Faz assim. Cuida da sua poesia e deixe a minha em paz”;
3) Quando estava em desvario poético, Nicolas ficou diante de um poema de Manoel de Barros que o desestruturou: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia”.
“Estou me desconstruindo o tempo inteiro. Não permito me tornar uma estátua. Nasci informal. Tem esse conflito que alimento e nego. O poeta emerge e submerge, e a sua poesia afunda e flutua.”
Essa coerência de Nicolas Behr vem do ímpeto da juventude. Nos anos 1980, já afamado em Brasília, ocupou um salão onde se anunciava um prêmio literário em Brasília e espalhou batatas pelo chão. O humor é espinha dorsal de sua linguagem.
Aprendi que não preciso dessa legitimação buscada de forma desenfreada por prêmios de poesia. Não sou um poeta de prêmios nem de academias. Não pertenço a confrarias de escritores que se sentem obrigados um a elogiar a obra do outro
A inspiração de Nicolas vem nesse cotidiano. É tipo um poeta de ouvido, de olho que gira 360 graus, que cria coisas complexas em versos simples. Um dia, Manoel de Barros colocou um poema de Behr ocupando a folha de rosto de um dos livros: “A infância é a camada fértil da vida”. Foi o verdadeiro e maior prêmio.
Enterrem meu coração
na areia do parquinho
da 415 sul
e deixem meu corpo
boiando
no paranoá
Dessa terra fértil de palavras, brota o poeta-menino sessentão que acorda cedo e vai vender verde para Brasília ficar menos cor de cimento. Ali, entre vendas de mudas de plantas, trocos e pagamentos de boletos, rabisca sentimentos.
Estou salvo
a poesia
não é tudo
São poemas miúdos ou minutos, como o escrito acima, que ganham velocidade de boca em boca e perdem até a autoria, de tanto serem repassados.
No auge do escândalo do Mensalão de Arruda, Nicolas fez uma camiseta e cunhou a frase: “Sou de Brasília e juro que não tenho culpa”. Virou meme.
“Não se sabe mais quem criou essa frase. É comum até tirarem meu nome. Não ligo. É a glória.”
Na casa sem muros planejada pelo casal, Nicolas brinca com o tempo diante de uma biblioteca que ocupa todo o mezanino. Enquanto explana a sua tentativa quase frustrada de se organizar entre estantes e caixas e mais caixas, Alcina, com quem é casado há 32 anos, testa peças para a sua coleção conceitual de moda. A criação vale nota do segundo semestre do curso que faz no Iesb.
“Ali, tem os livros de Brasília, aqui, os do Cerrado, lá literatura brasileira e, em cima, os repetidos.”
Sobre a mesa de trabalho, o computador fica ao centro, como um santo de altar, ladeado de impressões encadernadas, cheias de rabiscos.
São cinco originais de novos livros que virão por aí. Todos disputam sedentos a atenção do criador. Um deles é fruto de um desafio. Falar de Brasília com o mesmo tesão de 1977, quando era fácil se encantar com a musa esquisitona.
Será uma espécie de mitologia sobre nomes essenciais da história da novíssima cidade, capital do poder ou capital da subversão do poder. No título de cada poema, vai o nome do homenageado; no corpo, as palavras que escorrem o poema. Tem lá Ary Para-raios, Ana Lídia, JK e cia.
“Alguns nasceram de primeira. Adoro esse de Bernardo Sayão. Outros ainda estão incompletos, ainda por se completar.”
É uma delícia ver Nicolas trabalhar. Ele brinca com as palavras num raciocínio que escorre veloz como um rio que busca freneticamente o mar.