Como nasce uma coluna. Por ADELAIDE IVÁNOVA.

Adelaide Ivánova é uma jornalista, fotógrafa, poeta e tradutora brasileira, nascida em Recife em 1982.FONTE:http://www.revistapessoa.com

15/04/2017 08:57

 


Quando ganhou o Premio Nobel, Wislawa Szymborska disse que a primeira frase de um discurso era a mais difícil: “Pois bem, essa eu já deixei para trás...”. É meio assim que me sinto com esse primeiro texto e, na dúvida entre chegar chegando ou explicar como essa coluna nasceu – e o que pretendo fazer com ela –, optei pela segunda opção, ainda que nem eu saiba direito o que ela vai ser.

Quando Ronaldo Bressane me escreveu, no começo de Janeiro, falando sobre a possibilidade de escrever pra Pessoa, ele cantou a primeira bola: escrever sobre os poetas do mundo. Lembrei na hora de Wislawa. Com o decorrer da troca de e-mails, que depois incluiu Mirna Queiroz, nos aproximamos da ideia de que a coluna seria sobre/com poetas contemporâneos não-alemães vivendo na Alemanha. Pareceu (parece!) ótimo. A figura do “apátrida”, do exilado, sempre teve esse cheiro de mitológico, tanto na produção quanto na recepção de arte; mas, de 2015 pra cá, com a “crise dos refugiados” (entre aspas, porque tenho muitas reservas em relação à palavra crise nesse contexto – depois explico), parece ser ainda mais urgente pensar nisso e olhar para esses autores – mais ainda, lê-los. Esse tema tem, obviamente, aparecido constante e fortemente nas minhas conversas, seja na cozinha de Ricardo, seja na troca de e-mails com os escamandros Guilherme, Sergio e Nina, seja no bar com Silvia, minha melhor amiga (que não é poeta (é engenheira), mas devia).

Entre o silêncio e estouro (oi, Italo), desde que começamos a moldar essa coluna uma trombada foi fundamental para me aproximar do que eu talvez pudesse fazer aqui. Na edição 79 do e-flux journal o (espetacular) artigo de Jared Sexton (), professor de Estudos Afro-Americanos na Universidade da California, diz o seguinte:  “[enquanto a grande mídia demoniza o movimento negro], essa demonização tem sido contestada por uma geração independente, que tem criado um arquivo de imagens digitais, um repertório online prolífico nas mídias sociais e, ao mesmo tempo, tem criado uma rica cultura de protestos analógicos, que envolvem lambe-lambes políticos, graffiti, moda e dança, entre outras coisas”.



 

Essa costura tem me interessado muito, observar como os movimentos sociais influenciam o fazer artístico e como, num contrafluxo, a arte influencia os movimentos em sua articulação, em suas ações. E pensando mais especificamente no recorte dessa coluna: de que modo esses deslocamentos do autor contaminam sua prática hoje, em 2017? Como se não bastasse isso, e pra minha epifaniazinha particular, dia 4 de fevereiro, às 14h01, Pollyana Quintela (poeta, curadora, crítica independente), publicou os seguintes dizeres no Facebook:
 

O drama cotidiano vocês já sabem: os amigos poetas não veem exposições. Os amigos artistas não leem poesia. Os clubinhos seguem autorreferentes.

Que coisa maravilhosa.

Foi assim, por causa dessas duas trombadas (com o texto de Sexton, com a postagem da Quintela), que entendi que podia não somente ampliar, mas borrar esse pensamento do rasgo geográfico e identitário, aproximando-os da poesia enquanto fronteira em si, como sendo ela o trânsito propriamente dito – me aproximar da poesia como sendo ela própria um rasgo no fazer artístico.

Isso vem também de uma insegurança particular: ainda que escreva, minha formação não é em literatura, é em fotografia. Me sinto, pois, mais apta a dar pitaco sobre artistas que transitem, como eu, entre dois mundos (o de cidadã e o de imigrante; o de poeta e o de fazedora-de-outra-coisa).

E essa outra coisa pode ser tanta coisa: artes visuais, música, teatro, performance, ativismo analógico (we <3 Sexton), ativismo digital, tradução experimental, edição de guerrilha. São muitas as possibilidades, como são muitos os mundos. E à medida que eu for descobrindo autores, vou apresentando aqui pra vocês, junto com a confusão mental que provavelmente causarão em mim.

Pra terminar, deixo vocês com a tradução-releitura que Sergio Maciel fez do poema Our bodies, de Denise Levertov e de onde tirei o nome desta coluna. E uma leitura-performance da tradução, feita pela minha vó, Dona Adelaide, que odeia poesia. E até mês que vem :)

 

vovó + denise levertov from adelaide ivánova on Vimeo.

 

ainda verdes sob a densa ânsia

       nossos corpos

dos nossos cenhos e castos

 

mais em viço que as faces:

mamilos e umbigos e pentelhos

parem um tipo

 

ao léu de rosto: ou mudam

a sombra roliça ao

seio à bunda às bolas

 

a dobra da minha pança o

vão da tua

virilha como um chão de estrelas

 

como da terra à aurora

se curva num gesto de

gozo e

 

sabida ternura

nada assim vem

passar

em olhos ou lábios

apáticos

                        eu,

tenho

 

um rasgo ou um risco que amo

e corta

meu corpo da caixa do peito

à cintura e conta do

anseio e da

lonjura

 

            seu longo dorso

a cor da areia e

como o osso salta dizem

 

do céu após o poente

quase branco

sobre a funda mata à qual

 

as gralhas regressam diz


 

 
ADELAIDE IVÁNOVA

Adelaide Ivánova é uma jornalista, fotógrafa, poeta e tradutora brasileira, nascida em Recife em 1982. Lançou os livros autotomy (...) (São Paulo: Pingado-Prés, 2014), Polaróides (Recife: Cesárea, 2014) e O martelo (Lisboa: Douda Correira, 2016; Rio de Janeiro: Garupa, 2017). Vive e trabalha entre Colônia e Berlim, na Alemanha. Foto de Pedro Pinho.

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