Memórias eternizadas: moradores guardam bons momentos com a cidade

Fonte:https://www.correiobraziliense.com.br/revista-do-correio/2021/04/4919817-memorias-eternizadas-moradores-guardam-bons-momentos-com-a-cidade.html

24/05/2021 19:22

 

Marilda chegou a Brasília para acompanhar o marido, médico dos candangos, e aqui teve os cinco filhos
 -  (crédito: Arquivo pessoal)
Marilda chegou a Brasília para acompanhar o marido, médico dos candangos, e aqui teve os cinco filhos - (crédito: Arquivo pessoal)

À primeira vista, Brasília encanta pela arquitetura moderna e pelo projeto urbanístico singular no país e no mundo. Mas, se revisitado o período da construção da cidade, é possível ir além do valor estético e encontrar uma história rica, que envolve não só quem participou da empreitada da criação da capital interiorana, como também todas as gerações que se originaram da vinda dos candangos para o Planalto Central.

“A saga da construção da cidade é o nosso grande diferencial, que é inédito no mundo. É a maior obra do século 20, construída do nada. O fascínio por essa história é tanto que 61 anos já se passaram e a gente continua rememorando esse feito”, comenta João Amador, publicitário e idealizador do projeto Histórias de Brasília.

Para o publicitário, uma das características mais marcantes da cidade é a de ser um centro que une culturas diversas. “A população de Brasília é uma mistura da cultura de cada lugar, formando uma identidade brasiliense, que, acho, já está bem consolidada e vai se consolidar ainda mais daqui pra frente”, afirma.

Lançando luz sobre o passado e o presente da capital, a Revista do Correio, no mês em que é celebrado o aniversário da cidade, procurou conhecer as experiências e lembranças mais marcantes de pessoas que deram vida e sentido a Brasília.

Missão cumprida

Na mesma época em que os candangos chegaram para construir Brasília, Marilda Porto, 81, veio acompanhando o marido, Edson Porto, contratado como médico dos trabalhadores. “Pela lei, não se podia contratar operários se não tivesse um médico. Por isso, foi feita uma comissão para contratar um serviço médico, e meu marido foi escolhido para vir para cá”, explica.

Marilda afirma que até a inauguração da cidade não havia trabalho para as mulheres, logo, o papel dela era prestar apoio ao marido nas atribuições diárias. Especialmente quando o primeiro hospital foi construído e Edson se tornou o diretor, a demanda aumentou bastante. “Nessa solidão dos homens que vinham para a capital, as esposas eram uma companhia para incentivar e ajudar. A mulher era a força do homem. Como as construções ocorriam dia e noite, a demanda era grande.”

Marilda acredita que a mudança, no auge da juventude, aos 18 anos, foi positiva para o amadurecimento dela. Além disso, a pioneira se orgulha de ter participado de um acontecimento tão importante para a história do desenvolvimento do país. De acordo com as recordações que guarda na memória, havia entre os envolvidos na construção um forte sentimento de solidariedade. “Nós nos consideramos parentes uns dos outros, um acolhia e protegia o outro. Foi uma coisa muito bonita para o ser humano essa construção de Brasília, porque a gente se deu as mãos para um bem maior”, declara.

A pioneira enxerga que esse espírito solidário foi incorporado à identidade da cidade: “Eu tenho paixão por Brasília, acho a cidade de uma riqueza de gente. Vejo seres humanos muito solidários, que pensam muito no outro. Talvez isso seja fruto do que plantamos na época da construção”. Para ela, Brasília também tem uma energia forte de amor, que se refletiu na construção da própria família, formada por cinco filhos, 12 netos e três bisnetos.

Ao contemplar a Brasília de hoje, repleta de verde e uma arquitetura singular, a viúva tem a certeza de que aqui é o lugar dela. “Foi muito bonito eu ter construído minha vida aqui. Estou quase indo embora, mas vou contente com a minha estrada de vida. Eu dei conta da minha missão.”

Visita ao passado

Como JK construiu uma cidade em tão pouco tempo? É a pergunta que permanece despertando a curiosidade de muitos. Elias Manoel, historiador do Arquivo Público do Distrito Federal, destaca que antes da posse de Juscelino Kubitschek o plano da construção da capital ganhava contornos: “A gente normalmente pensa que quando JK foi eleito presidente tudo começou do zero. Mas, não. Durante todo o período da República, de 1889 até 1956 — quando Brasília começou a ser construída —, já tinham sido feitas várias comissões de preparação para a construção da capital, ou seja, vários problemas instados tinham sido resolvidos, abrindo caminho para o processo de construção da cidade”.

Brasília é fruto de um processo histórico que perpassa várias épocas e conta tanto com apoiadores quanto opositores. Segundo Elias, um dos entraves para a transferência da capital para o interior do país remete ao período imperial, quando se pensava que levar a capital para o interior não traria resultado, em razão do vazio demográfico existente na região.

Além disso, já no período republicano, havia resistência por parte de cidades litorâneas, como São Paulo e Rio de Janeiro, pelo receio de perderem não só os fundos de investimento como também o protagonismo. “O Rio de Janeiro também não queria perder a força política que tinha, pois o estado era sede do país, onde estavam centralizados todos os poderes”, explica Elias.

Quanto aos motivos que incentivaram a transferência da capital para o quadradinho, o historiador elenca dois: “Se você pegar o período colonial, a ideia de levar a capital para o interior do país estava mais ligada à questão de segurança, pelo fato de a capital — que à época era Salvador — estar no litoral e, por isso, mais suscetível a ataques. Além desse elemento de proteção, surgem novos, principalmente a partir da República, que se relacionam ao interesse geopolítico do Brasil de tentar conquistar e levar progresso para o interior do imenso território.”

A paixão de Elias pela cidade está atrelada ao papel que ele desempenha no Arquivo Público do DF. “Eu sou apaixonado pela cidade porque eu trabalho na casa que é a memória de Brasília. A história desta cidade que foi concretizada na terra, a alma dela está no acervo documental, nos projetos cartográficos e fotografias com que eu tenho contato todos os dias. Então, eu convivo diariamente com toda a documentação histórica dos antecedentes e da construção de Brasília”, justifica.

Turma do bloco

 

Legião Urbana era a trilha que embalava os encontros da turma do bloco, da qual Renata Leporace Farret fazia parte
Legião Urbana era a trilha que embalava os encontros da turma do bloco, da qual Renata Leporace Farret fazia parte(foto: Arquivo pessoal)

 

A psicóloga Renata Leporace Farret, 48, morou a vida inteira nas quadras do Plano Piloto, e foi ali, em meio aos pilotis dos blocos, que a brasiliense viveu suas experiências mais valiosas. Ela se recorda das brincadeiras de pique-bandeira, polícia e ladrão e bete debaixo do prédio, na companhia de uma turma animada que morava nas entrequadras. A apelidada Turma do bloco acompanhou toda a infância e adolescência dela.

“Aquela tropa de cerca de 20 pessoas ia lanchar na rua do comércio da 308 Sul, onde tinha uma lanchonete chamada Truc’s. A gente tinha um clubinho e fazia festinhas uma vez por mês na casa dos amigos. Essas lembranças são as que mais marcam, pois remetem aos momentos mais divertidos da minha vida. Algumas pessoas do grupo são meus amigos até hoje”, conta.

Em 1997, eles organizaram uma festa para matar a saudade da turminha e relembrar os velhos tempos. Outro encontro nostálgico foi realizado na rampa do Jardim de Infância da escola, que ficava na quadra onde Renata morava. Para ela, os blocos da Asa Sul têm um significado especial e são símbolos de momentos de confraternização e alegria.

A trilha sonora dessas vivências é formada pelas músicas da Legião Urbana, banda que marcou a geração dos anos 1980. “Lembro que na 8ª série fizemos uma viagem de ônibus, bem na época que tinha acabado de ser lançado o segundo disco, e, no ônibus, todo mundo foi cantando as músicas em coro. Acredito que o sucesso da banda entre a minha geração é devido ao fato de que estávamos começando a descobrir o rock nacional. Por ser de Brasília, chamou bastante a nossa atenção, muitas pessoas se identificaram com as letras e com o ritmo”, lembra a psicóloga.

Quando se fala em Legião Urbana, um episódio épico que vem à tona é o último show da banda em terras brasilienses, realizado em junho de 1988. Com o irmão e os amigos do bloco, Renata presenciou o histórico evento no Mané Garrincha. Às vésperas de uma prova de matemática — que quase a fizeram desistir de ir —, ela decidiu prestigiar o show que acabou em muita confusão. “Eu estava lá curtindo o som, quando, de repente, uma briga ali na frente começou. O Renato Russo reclamou e as pessoas começaram a jogar coisas no palco, até que ele falou: ‘O show acabou’. E foi embora. As pessoas ficaram sem acreditar que eles não fossem voltar, mas, de fato, não voltaram”, relembra.

No meio do empurra-empurra, Renata acabou se perdendo do pessoal com quem foi ao show e, só lá fora, depois de um tempo, conseguiram se reencontrar. “Acho que foi um evento que praticamente Brasília inteira estava, por isso foi bem marcante para história da cidade. Também foi a última vez que eles fizeram show aqui.”

Registros de memórias

Com DNA brasiliense, o publicitário João Carlos Amador sempre teve uma relação de carinho com o lugar de origem. Depois de morar em outros estados por conta do ofício do pai, aos 17 anos ele se instalou de vez na capital e foi quando passou a criar memórias afetivas da cidade.

“A lembrança que eu tenho é de uma Brasília mais bucólica, em que as crianças andavam de bicicleta e todo mundo descia para brincar debaixo do bloco. Apesar de agora, pelas redes sociais, termos um contato mais facilitado, eu acho que o contato real era maior antigamente, porque as pessoas naturalmente saíam mais de casa, encontravam-se mais. As opções de lazer eram menores, então havia mais facilidade de concentração de moradores. O senso de comunidade era bem maior”, relembra.

Inspirado por um trabalho semelhante realizado em São Paulo, ele criou um projeto em 2014, chamado Histórias de Brasília, que reúne curiosidades sobre a capital em formato de texto e registros fotográficos antigos, como uma forma de recontar a memória coletiva da capital. “Existe uma cultura que começou a ser estabelecida já há alguns anos, de as pessoas começarem a ter esse senso de memória, de história, procurar coisas antigas nos seus arquivos, construir essa memória coletiva. E, claro, a internet e as redes sociais facilitam muito isso”, acredita.

Para João, esse resgate do passado virou um hábito repleto de significado, além de proporcionar um sentimento de encontro. “Eu acho legal esse sentimento de encontro que uma foto antiga pode proporcionar. Antigamente, você guardava uma memória rara por meio de álbuns empoleirados no armário. Com o projeto, as pessoas conseguiram um canal de divulgação para essas fotos, porque eu publico, elas republicam e viram, literalmente, uma memória coletiva. Não é meu nem do fulano, é uma memória da cidade. Todo mundo se apropria dela.”

Laços de alegria

 

José Cavalcante chegou a Brasília um ano antes da inauguração e participou da festa comandada por Juscelino Kubitschek: "Festa do povo"
José Cavalcante chegou a Brasília um ano antes da inauguração e participou da festa comandada por Juscelino Kubitschek: "Festa do povo"(foto: Arquivo pessoal)

 

 

Histórias de Brasília. Juscelino Kubitschek (JK) na inauguração de Brasília.
Histórias de Brasília. Juscelino Kubitschek (JK) na inauguração de Brasília.(foto: Arquivo Público do Distrito Federal)

 

Convidado para trabalhar na filial do Bank of London, o advogado aposentado José Cavalcante, 83, saiu da capital paulista para Brasília ainda jovem, com apenas 21 anos. Quando chegou ao quadradinho, um ano antes da inauguração, tudo estava começando, inclusive o banco, que era o pioneiro na região.

Nas lembranças de José, a inauguração da cidade foi uma “festa do povo”, o ápice de um grande feito para a história do país. “Foi a realização de um sonho que vinha desde o Império. Era uma alegria só, um sentimento de fazer parte e participar de uma grande realização. Cada trabalhador tinha um pedacinho de sua vida entregue na construção de Brasília. Não foram apenas as autoridades que participaram. Os visitantes e os candangos também estiveram presentes, todo o povo estava lá externando a alegria de terem construído uma cidade”, narra, saudoso.

Entre os eventos presenciados por ele que mais marcaram o início da existência da cidade estão a corrida de fórmula 1, no Eixão Sul, e a primeira missa inaugural da cidade, no pátio externo do Supremo Tribunal Federal. “O campeão brasileiro da época, o Chico Landi, participou da corrida. Além disso, o evento contou com a presença do campeão mundial, o argentino Juan Manuel Fangio. Juscelino também estava presente com aquela alegria dele, sempre no meio do povo.”

Assim que a vida estava mais estabilizada, José buscou uma integração sócio-religiosa e entrou para o grupo da Igrejinha de Fátima, que promovia inúmeras atividades voltadas para a fé. Foi por meio desse trabalho que ele conheceu Maria Teresinha, sua falecida esposa. “Fomos nos conhecendo mais a fundo e sentindo essa aproximação de almas, de modo de ser, e, aos poucos, foi crescendo essa afetividade e simpatia. Daí passamos a namorar, noivamos e nos casamos, em 1962, na Igrejinha de Fátima, onde nos vimos pela primeira vez”, recorda-se.

Com ela, o aposentado construiu laços familiares, que só foram possíveis graças à mistura de pessoas que vinham de todos os cantos do país: “Por ser uma nova cidade, Brasília também contou com esse ambiente de integração nacional, espiritual e de corações — o que favoreceu a realização de famílias. Imagine quantas e quantas famílias surgiram em Brasília dessa integração de diferentes nacionalidades?”.

Da união entre o paulista e a amazonense, nasceram dois filhos e quatro netos, motivos de alegria para José. “É uma alegria termos uma família originada, criada e desenvolvida aqui. São pessoas amorosas. que refletem essa bênção que é Brasília.”

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

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