Irving Penn sentia-se mais à vontade e seguro quando estava dentro de um estúdio. O fotógrafo norte-americano podia assim ter a sensação mais clara de controle tanto sobre os elementos à sua volta quanto sobre os objetos por ele fotografados. Uma representação fotográfica que escapasse facilmente ao seu poder de manipulação desafiava sua capacidade de tolerância estética. “O realismo do mundo real é algo quase insuportável para mim”, explicou nos anos 1970. Famoso pelas fotografias publicadas na revista Vogue durante quase sete décadas de trabalho, Penn foi fundamentalmente um fotógrafo de estúdio, como enfatiza Irving Penn: Centenário, exposição do Metropolitan Museum of Art que celebra o centenário de nascimento do artista norte-americano e o anúncio de que a Fundação Irving Penn doará cerca de 150 fotografias para o museu nova-iorquino. Essa é a terceira mostra que o Met dedica ao trabalho do fotógrafo nascido no Estado de New Jersey, em junho de 1917.
Dividida em onze seções onde aparecem todas as imagens doadas pelo instituto que administra a obra do fotógrafo, morto em 2009, Irving Penn: Centenário apresenta um profissional a um só tempo tradicionalista e criativo, oscilante entre os universos das fotografias comercial e artística, admirador das vanguardas modernistas europeias e aspirante à criação de uma obra de arte tão canônica quanto uma escultura grega clássica. A curadoria da exposição do Met, realizada por Maria Morris Hambourg e Jeff L. Rosenheim, acentua a devoção de Penn ao próprio trabalho, além da atenção por ele reservada à composição e às nuances de suas imagens, marcadas por um formalismo e modernismo que haviam se tornado norma quando suas fotos passaram a ser exibidas em museus dos Estados Unidos nos anos 1970. Penn surge como um indivíduo simples, de origem proletária e avesso ao mundo glamoroso exibido nas páginas da revista Vogue, nas quais imperava, como ele mesmo afirmou, uma “elegância anoréxica”.
Os curadores, entretanto, tomaram certo cuidado para relativizar uma leitura predominantemente consagradora de um fotógrafo canônico, cuja primeira exposição no Met, Irving Penn: Material de rua, foi realizada em 1977, seguida pela segunda mostra, em cartaz em 2002, com o título Corpos terrenos: os nus de Irving Penn 1949-50. Apesar de superficial, tal relativização ocorre na série mais propensa à polêmica, chamada Retratos etnográficos, 1967-71. A sala da exposição com este trabalho apresenta imagens feitas por Penn na Guiné, em Papua Nova Guiné e no Marrocos e publicadas em cores pela revista Vogue. Penn compilou uma seleção desses retratos em preto e branco no livro Mundos em uma pequena sala (1974).
O método que consagrou Penn no início de sua carreira como fotógrafo de moda tornou-se com o tempo mais espinhoso, por estar sujeito a promover a reprodução de estereótipos quando retrata indivíduos de sociedades não-ocidentais. Em uma série de retratos de artistas e famosos feitos para a Vogue a pedido de Alexander Liberman —diretor de arte da revista —, Penn inventou diferentes artifícios para isolar os retratados do ambiente à sua volta. Para fazer as séries Retratos existenciais, 1947-48 e Pequenas trocas, 1950-51, o fotógrafo adotou como fundo neutro uma cortina velha e manchada de teatro e um cenário improvisado composto de biombos em um ângulo agudo. A cortina criava uma paisagem de terra arrasada, em consonância com a destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial ou o universo ficcional de uma peça de Samuel Beckett. Penn posicionava os seus retratados de costas para o vértice formado pelos biombos, espremendo-os entre as retas desse ângulo agudo e imobilizando-os de modo a mirarem a sua câmera. Ao criar como fundo um local não-identificado, em que as especificidades tendem a se anular, Penn pôde concentrar toda a sua atenção nas expressões corporais daqueles que posavam para a sua câmera e assim guiá-los no ambiente cuidadosamente controlado de um estúdio. Era uma variação da sua experiência seminal nos anos 1930 e 1940 com o retrato de naturezas-mortas. “Objetos inanimados são bons, seguros e fáceis de controlar e nada perturbadores”, disse Penn a respeito do seu trabalho com as naturezas-mortas.
Quando viajou para a Guiné, onde fotografaria mulheres descendentes das amazonas do Reino do Daomé, Penn exigiu a princípio um estúdio no país africano que recebesse luz natural desde o norte. Como esse tipo de estrutura se mostrou impossível de ser alugado em regiões mais remotas do país africano, Penn seguiu a sugestão de Mary Roblee Henry, então editora da Vogue. Henry aconselhou Penn a montar uma barraca, dentro da qual poderia separar mulheres e crianças da paisagem natural. Esse estúdio improvisado e ambulante era uma espécie de “região neutra” na vila de pescadores em Ganvié. A barraca, segundo o fotógrafo americano, “não era a casa deles, pois eu havia proporcionado esse invólucro estrangeiro à vida deles; não era a minha casa, já que eu tinha obviamente vindo de um outro lugar, bem longe. Mas nesse limbo criou-se para nós a possibilidade de contato que foi para mim uma revelação e que foi com frequência, eu podia perceber, uma experiência comovente para os retratados”.
O uso da palavra limbo por Penn para se referir a seu estúdio improvisado e ambulante remete à conotação de um lugar indefinido, esquecido, marginal. Uma das características fundamentais do seu trabalho, a prática de isolar os retratados do seu contexto cultural e descaracterizar o cenário em que estão inseridos ecoa um discurso colonialista e reproduz estereótipos em relação a povos nativos, admitem os curadores de Irving Penn: Centenário. Penn contou com certa vergonha que, antes de sua viagem para Papua Nova Guiné, ele “esteve preocupado com o fato de trazer a sua mulher depois de ler sobre canibalismo” no país da Oceania. Coincidência ou não, esse discurso sobre canibalismo está na base do encontro entre colonizadores europeus e populações aborígenes. Tratadas como seres selvagens, mais próximos dos animais do que dos seres humanos, essas populações poderiam ser violentadas e escravizadas.
Essa perspectiva influenciou a relação colonialista e controversa entre fotografia e antropologia nos século XIX, o que pode tornar explosivo o trabalho etnográfico de Penn na Guiné, em Papua Nova Guiné e Marrocos. Sob o ponto de vista comercial e editorial da Vogue, esse tema candente e doloroso virou uma oportunidade, segundo interpretação de Diana Vreeland, editora-chefe da revista. Para Vreeland, o vestuário e os adornos corporais registrados nos retratos de Penn eram um material autêntico e complementar à contracultura dos anos 1960 que a revista tentava capturar em suas páginas.
Embora a curadoria de Irving Penn: Centenário tenha abordado o tema controverso da relação entre colonialismo e fotografia, ela deu menos atenção às questões de gênero do trabalho de Penn, que se dizia mais preocupado em retratar as mulheres dentro dos vestidos do que os próprios vestidos. Em uma das seções mais experimentais da exposição do Met, uma série de retratos apresenta mulheres nuas, com a cabeça cortada. Penn escolheu mulheres de corpos mais magros como modelos iniciais, depois sucedidas por mulheres mais corpulentas e fora de forma. O efeito dos corpos sem rostos é perturbador, ao mesmo tempo que desencoraja o voyeurismo. Tanto Liberman, diretor de arte da Vogue, quanto Edward Steichen, fotógrafo e curador do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, rejeitaram esse projeto de Penn.
Outro tema delicado da exposição é a escolha de mulheres jovens e atraentes, com os seios nus, para a edição da Vogueque publicou a série de retratos feitos na Guiné. Apesar de as retratadas desafiarem em algumas imagens a linguagem fotográfica imposta por Penn, o que prevalece no enquadramento das guineanas é uma composição diretamente transplantada das páginas de Vogue e da National Geographic. Esse registro em imagens realizado por Penn pertence a uma tradição que lamenta o desaparecimento de culturas locais. Ao mesmo tempo, ao reproduzir padrões estéticos dentro de um estúdio onde quer que vá, Penn se arrisca ao dar margens à interpretação de estar exercendo o poder de uma visão masculina, que desconhece outras perspectivas por desinteresse em se aventurar em um universo com significados culturais que lhe escapam ao controle. Quando se lê o texto de introdução escrito por Maria Morris Hambourg no catálogo de Irving Penn: Centenário, é possível desconfiar da citação feita pela curadora de um trecho de Pele Negra, Máscaras Brancas, um livro clássico de Frantz Fanon sobre colonialismo. De acordo com Hambourg, Penn teria promovido em suas fotografias o que Fanon descreveu como “a criação de um mundo humano — isto é, um mundo de reconhecimentos mútuos”.///
Francisco Quinteiro Pires (1982) é jornalista e doutorando no Departamento de Língua e Literatura em Espanhol e Português da Universidade de Nova York (NYU). Nasceu no Brasil e vive em Nova York desde 2010.