"Perfume de Gabi" pela escritora Thayara Martins.

31/03/2014 14:29

 Perfume de Gabi 
 
A primavera estava no fim.. às vezes.. no final da tarde caía uma chuva rápida. 
Assim, eu abria a janela do meu quarto para que o perfume das flores e o cheiro gostoso 
de terra molhada, vindos do jardim, entrassem na casa. Com o passar das semanas as 
chuvas se tornaram frequentes, os ventos sopravam mais fortes e foi nessa época de 
noites frescas e perfumadas que conheci Gabi... 
Eu tinha saído para encontrar amigos, beber um pouco de cerveja e fumar alguns 
cigarros adocicados na famosa praça do D. I., perto do centro de Taguatinga. Os mais 
cultos desocupados da cidade se encontravam lá, leitores dos mais reconhecidos nomes 
da literatura universal como o russo Fiódor Dostoiévski, por exemplo. Esse escritor era 
muito lido e comentado e Rodion Románovitch Raskólnikov o seu personagem mais 
adorado. Todos, de acordo com a divisão dos indivíduos feita por Raskólnikov, 
almejavam, sonhavam ou simplesmente tinham a ilusão de fazer parte da categoria de 
homens extraordinários. E, em nome de um objetivo maior, poder ter o direito de 
infringir regras sociais. 
Mestres em anarquismo e vandalismo, a bem da verdade deturpadores de uma 
ideologia. Após lerem apaixonadamente e sem preocupação alguns teóricos anarquistas, 
esses inocentes “estudiosos” encontravam na depredação de monumentos públicos o 
meio mais oportuno de lutar contra o Estado. 
E, é claro, não faltavam os doutrinadores de Nietzsche – para eles, Deus não 
morreu, tornou-se Nietzsche. Em comum, esses nobres vagabundos tinham o gosto pela 
música, em especial, o som de três instrumentos juntos: guitarra, baixo e bateria. 
Aos sábados, o “Vaga-lume”, o bar mais freqüentado da praça, organizava 
shows e festas. O “Lume”, para os íntimos, era famoso por suas apresentações musicais. 
Naquele sábado, quatro rapazes afinavam seus instrumentos e prometiam um 
espetáculo musical e cômico. O lugar estava repleto de pessoas, ouviam-se muitas 
vozes, gargalhadas, tilintar de garrafas... Entre os muitos rostos desconhecidos e outros 
nem tanto, vi pequeninos objetos coloridos sobre um espesso cabelo negro. De longe, 
essas coisinhas vermelhas e prateadas chamavam muita atenção. 
O quarteto anunciou a primeira música, um punhado de alegres bêbados seguiu o 
som e se colocou entre eu e a garota de cabelos coloridos por pequenas peças de 
plástico. O “Vaga-lume” estava lotado demais para o meu gosto, sai e sentei em um banco de concreto em frente à porta do estabelecimento. De qualquer maneira, eu 
conseguia ouvir a música de onde estava sentada. 
A praça era cercada por árvores, fechei os olhos e senti a brisa noturna... um 
vento frio e gostoso, os mesmos cheiros adocicados vindos das flores caídas no chão em 
poças d’água... De repente senti o perfume da flor dama-da-noite, para mim, um cheiro 
enjoativo... escorreguei um pouco no assento e recostei a cabeça, leve, descontraída... 
Abri os olhos e qual não foi o meu espanto ao ver a garota das presilhas na minha 
frente. Eu a reconheci... era Gabi. 
Há muitas festas atrás uma colega nos apresentou... lembro que não notei nada 
de especial nela naquela ocasião e sequer conversamos. 
Depois eu sempre a via na rua, perto da minha casa... nos bares, festas, shows... 
ela estava em todos os lugares. 
Ela sentou ao meu lado, para mim sua presença tão próxima foi como um 
choque térmico, passei do frio ao calor em um instante. Duas amigas a acompanhavam, 
elas sorriam muito, falavam alto, na certa deviam ter bebido alguma coisa, mas ainda 
não o bastante para uma embriagues. As amigas voltaram para o “Vaga-lume”, Gabi 
ficou. Eu consertei minha posição relaxada e sentei como uma boa moça comportada. 
Procurei um cigarro nos bolsos, ela olhou para mim e sorriu. 
Percebi que ela também me reconheceu. Devolvi o sorriso... 
Ela perguntou alguma coisa de que não me lembro mais e iniciamos uma longa 
conversa. 
Eu não tenho muitos amigos e, em especial, acho as mulheres um tanto 
desinteressantes. Porém, Gabi parecia ser uma raridade, tão inteligente quanto 
agradável. O que ela falava fazia tanto sentido para mim... parecia que havia encontrado 
alguém como eu. Percebi que meus olhos brilhavam ao olhar para ela. Senti-me um 
pouco desconcertada com tanta admiração por alguém... não a olhava em seus olhos. 
Tinha medo de ser aspirada por aquela figura tão encantadora. 
Ela estava tão desembaraçada... como se me conhecesse de muitos outros 
carnavais, suas mãos delicadas, com unhas esmaltadas de vermelho, se movimentavam 
no ar com tanta graça enquanto ela falava... A calça risca de giz justa, que ela usava, 
ressaltava seus quadris arredondados e ajudava a dar um ar feminino a um corpo magro 
demais para uma mulher. 
Desde que lembro, nunca tinha notado uma expressão de melancolia ou 
aborrecimento no seu rosto... Enquanto eu caminhava pela vida como se houvesse cometido um grande e irremediável erro... imperdoável... fadada a pagar por ele até o 
fim dos tempos. 
Gabi me convidou a ir a sua casa para uma sessão de filmes hispânicos no 
domingo. Eu cheguei a sua casa no início da tarde... as cortinas da janela estavam 
abertas. Eu hesitei um pouco e pensei em voltar dali. Eu tentava reprimir qualquer 
pensamento que pudesse insultar-me ou desconsertá-la... seria apenas uma visita, um 
encontro divertido, uma sessão da tarde diferente. Porém, por mais que eu tentasse me 
acalmar, muitas idéias inquietantes passavam pela minha cabeça. 
Tensa, atravessei a rua e toquei a campainha... não demorou, ela abriu a porta. 
Sorriu ao me ver... senti que não podia temer aquele sorriso acolhedor, quase familiar. 
Nos abraçamos carinhosamente, seus cabelos estavam presos como de costume. Na sala, 
Gabi fechou as cortinas vermelhas, ‘como no cinema’ ela disse. Sorri timidamente. O 
cômodo ficou levemente escuro e com um tom avermelhado provocado pelo efeito da 
luz do sol através da cortina vermelha. 
Primeiro filme, “O crime do padre Amaro”. A representação e a beleza do 
protagonista nos encantou, um ator mexicano muito aclamado pela crítica. Durante a 
exibição do segundo filme, “Carne Trêmula”, senti suas mãos nos meus cabelos... um 
arrepio forte na nuca e sob a luz avermelhada cai como em um estado de sonho... longe 
dali... senti de novo o aroma doce e enjoativo da flor dama-da-noite... fui envolvida em 
brumas... cheiros adocicados... mãos suaves... eu não sabia o que fazia ali ou mesmo 
onde estava, o que não deixava de me causar medo... e desejo. Gabi estava em casa, 
literalmente, sua desenvoltura e segurança impressionavam. 
 Não! Eu não posso ficar aqui! Empurrei Gabi com força. 
- O que foi? Não gosta? Perguntou-me com um sorriso perverso... 
Essa provocação foi irritante... sabia que eu estava gostando. 
Ela aproximou-se e me beijou os lábios. 
Maldita! Pensei... não havia como escapar... era um feitiço e eu sentia o seu 
efeito perturbador, devastador e delicioso. 
O que aconteceu comigo? 
Eu não conseguia entender. 
 Ah... e o perfume... aquele perfume da “dama-da-noite” no ar... 
 

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