BRESSON, A ÚLTIMA LENDA.por Walter Firmo.

31/03/2022 20:11

 BRESSON, A ÚLTIMA LENDA

Henri Cartier-Brasson é aúltima lenda viva da minha galeria de mestres, o mais famoso, o mais charmoso, venerado em todas as classes. Sua influência é mundial. O pensador Jean-Paul Sartre, amigo de Bresson, prefaciando o livro fotográfico "De uma China a outra", diz que "Cartier-Bresson fotografou a eternidade, fotografou a frágil eternidade. Suas fotos são como uma melodia que sempre recomeça. Para pará-la, seria necessária quebrar o disco". A imortalidade deve-se ao fato do papel fotográfico se eternizar, porque, antes do invento de Niépce, morria-se e pronto. Agora sobrevive-se, emulsionado em finas membranas sobre um suporte de papel fotográfico, ou impresso em livro. Nos afastamos de Deus? Claro que não. Apenas, através de um processo científico, aprendemos a criar raízes no muro da casa da lembrança., debaixo da árvore da saudade. O próprio Bresson, no seu livro "Os europeus", adverte: "os fotógrafos não fazem do que mostrar as agulhas do relógio, mas eles escolhem os seus instantes".Eu estava lá, eis aí o que vi.Em fotografia, a criação é o curto-circuito de um momento, um jato, um átimo, um piscar de olhos, uma descoberta sem o breve período estudado. Este é o legado das fundações do pensamento bressoniano. Felino que espreita a presa e a cena em seus backgrounds e luzes, e a "roubada" harmoniosa de uma engenharia plena. Bichano que salta sem nenhum ruído, que, com fome, come sua caça, coisas que estão no mundo e sobretudo na vida, transformando esse ato, aparentemente predador, em epifania épica, onde seus heróis são moldagens do anonimato humano sem fronteiras. Apátrida em sua arte de escultor errante, meu mestre brasileiro José Medeiros, arrematava que "a fotografia que fazemos é o produto do que somos, agimos e pensamos".
Lembrei-me da namorada que, ao falar por telefone com Bresson, quando nos hospedamos na casa de Sebastião Salgado, demorou a sair do transe em que ficou após desligar o aparelho. Chegou a brincar que não lavaria o ouvido durante algum tempo...Mas eu queria muito menos; apenas um encontro, mesmo por acaso em qualquer rua, banhando-me no facho de luz dos seus olhos, como em um bálsamo milagroso, para mitigar minhas carências visuais.
Queria encontrá-lo e estava disposto mesmo a fazer um plantão em sua porta na rue de Rivoli, onde mora, em frente ao jardim de Tuileries.Era meu último personagem. Precisava da sua benção e da unção de seus olhos. Peguei o metrô da linha 1, que liga Porte de Vincennes à Défense., e saltei na estação do Louvre, mas qual não foi minha surpresa ao saber que seu nome tinha mudado para "Henri Cartier-Bresson. Pensei com as minha máquinas fotográficas japonesas que aquilo era impossível, devia estar delirando, pois ele estava vivo. Saí apressado da estação e, lá fora, , atordoado pelo insólito da informação, caminhei até a avenue des Champs-Elysées, que vai da Place de la Concorde ao Arc du Triomphe, e vi que o nome da principal avenida de Paris tinha mudado para "Henri Cartier-Bresson". Mexi-me com força quase urinando nas calças, como devem fazer os mortos dentro das suas sepulturas. Duvidei e não acreditei. Dobrei à esquerda chegando a beira de um rio, levemente caudaloso, cujo nome era "Henri Cartier-Bresson". Atravessei todas as suas pontes, que também se chamavam "Henri Cartier-Bresson". Acho que alguém estava tirando uma onda comigo, pois não era possível tamanha brincadeira de mau gosto. Seria um sonho ou pesadelo? Fui a Place de la Bastille, e lá, encimando do alto de um pódio de 40 metros no meio da praça, substituindo a linda figura de um anjo dourado com asinhas nos pés que simbolizava a queda da Bastilha, estava a estátua majestosa de um homem alto e magro com uma câmera fotográfica envergada no peito. Na comemorativa placa de bronze ao pé da pequena torre pude ler:" Monumento a Henri Cartier-Bresson, mérito ao criador do "instante decisivo", aquele que transfigurou a ação espontânea de tempo e espaço, inventando a ilusão do eterno".
Sentei-me num daqueles bistrôs e chorei. Lágrimas torrenciais para um homem que não veria nunca mais, conjeturei comovido diante do respeito e da reverência da pátria àquele voluntarioso filho que idealizou um mundo sem fronteiras, pousando seu olhar sensível e inteligente à causa humanitária. Refleti que no Brasil jamais se celebraria um autor cujo aparato de criação fosse uma "abominável máquina fotográfica", equipamento de efeito multiplicador e, por isso, rejeitado por uma sociedade que teima em considerá-la uma "arte menor".
Sob efeito de grande tensão, sentir que minha garganta precisava de um legítimo Sauvignon Bordeaux, um branco gelado para afogar as mágoas e pedi ao garçom do bar que providenciasse. Se não fosse o melhor da safra, seria o bom da cifra, já que meu dinheiro estava curto, pois a bolsa que recebia do Banco ainda estava por chegar.
Voltei-me a Bresson, esplendor nacional. Que belo, que pena! Tinha ido a Paris com o intuito de encontrar-me com todos meus afetos fotográficos, mitologias quase contemporâneas. Não poderia ver Bresson, que estava morto. Paguei a conta e saí fora, andando a esmo, até encontrar um chafariz esguichando água pela boca, como um peixe. Precisava me refazer enchendo a cara de água fria. Chego perto. Observo a magistral alegoria da fonte, doação do governo dos Estados Unidos à França, leio com atenção o pequeno trecho da redação gravada em alto relevo sobre ferro puro: "Ao povo francês, alguns personagens da ode de um filho que soube honrar seu país". Abaixo, saudando a honraria, a assinatura do presidente americano, Eisenhover. Levantando a cabeça, fixei meus olhos no imenso painel a derramar água sobre as imagens de Henri Cartier-Bresson, imortalizadas durante várias passagens do fotógrafo pelos Estados Unidos, de 1935 a 1975, enormes esculturas simbolizando instantes mágicos, captados pelo mestre e publicados no livro L'Amérique/Furtevement, editado pela Seuil. Vários escultores, inspirados nessa publicação, elaboram suas obras expostas nesse logradouro; um homem sorridente, todo de preto, de chapéu e óculos, encostado na janela envidraçada de um barco a refletir a silhueta da cidade de Nova Iorque (1947); um executivo em seu escritório recebendo a vista da sua secretária que, ao encaminhar-se para ele, deixa aparecer através da divisória uma parte de sua perna (Nova Iorque, 1961; a velha senhora enrolando-se na bandeira americana e mostrando um caminho (Washigton, D.C, 1958); o presidiário de punho cerrado exibindo a perna por entre a porta do Xadrêz (Nova Jersey, 1975); a locomotiva-bufa, soltando fumaça, puxando seus filhos-vagões; e, em primeiro plano, a carcaça de um velho e impraticável carro, que tudo e mudo observa. (Arizona, 1947).
Afasto-me, transtornado, do real. Corro ao jornaleiro do outro lado da rua para comprar um cartão telefônico e gritar na cabine, falando aos amigos brasileiros que fui roubado durante todos esses anos, em um país que ainda hoje rejeita seus artistas fotográficos. Desligo. Recorro rapidamente aos jornais do dia, quero saber o que acontece na França e no mundo. Outra vez me surpreendo ao reler as manchetes dos periódicos franceses:"Amanhã, feriado nacional. As nove horas, todos na avenue Henri Cartier-Bresson. Parada militar e um minuto de silêncio ao dia do Instante Decisivo".
As imagens se distanciam amorfas. Sinto que vou desmaiar. O telefone toca. "Alô", dou a partida. Do outro lado da linha, uma voz familiar me alivia. É meu "irmão", Zeka Araújo, avisando, do Brasil, que hoje é dia do aniversário do nosso mestre maior.
PS - Cena capturada em Paris no ano 2000, durante um casamento numa das igrejas da cidade-luz.

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