Repórter fotográfico clássico, formado na escola do hard news (muitas vezes, mais heavy do que hard), Severino Silva surpreendeu o fotojornalismo carioca ao pedir as contas no jornal O Dia, depois de quase 40 anos de uma carreira consagrada. Aos amigos, espantados com a súbita decisão, se disse insatisfeito com as condições de trabalho e, principalmente, com vontade de se dedicar a projetos pessoais, mais elaborados. Alguns dias depois, arrumou as malas – mais equipamento do que roupa – e partiu para o Nordeste. Trocaria a rotina de retratar o duro cotidiano da cidade do Rio de Janeiro pelo desafio de aprofundar Fé, Luz e Sombras, trabalho documental sobre as manifestações religiosas brasileiras, que há anos despertavam seu interesse.
Uma mudança dupla: da estabilidade de um emprego formal aos altos e baixos da vida de freelancer e (talvez ainda mais difícil) uma guinada na própria abordagem fotográfica, trocando o imediatismo do trabalho diário pela paciente elaboração do documentarismo. Do reflexo à reflexão, numa análise simplista mas não necessariamente falsa.
“A situação do jornal já não estava tão boa, com salários atrasados, ameaça de mais cortes na equipe. Minha aposentadoria tinha saído, resolvi que era hora de abrir espaço para os mais jovens e desenvolver um projeto pessoal”, explica. Ele já vinha trabalhando nesse tema em férias e folgas, mas precisava se dedicar mais.
Experiência a favor do olhar
Encarar riscos não é novidade para esse paraibano de Pirpirituba, no agreste do Estado. Órfão de pai aos oito anos, chegou ao Rio de Janeiro com 11, com a mãe, a avó e a irmã. Depois de rodar pela Baixada Fluminense, a família se estabeleceu na Tavares Bastos, favela encravada no bairro do Catete. Ainda adolescente, trabalhou em obras e no comércio, enquanto alimentava o sonho de ser fotógrafo – que começou a se materializar quando conseguiu uma vaga no setor de limpeza de O Globo.
Insistente e disposto a aprender, em pouco tempo fazia os primeiros frilas para o próprio jornal, nas folgas do trabalho como fotógrafo industrial. Depois de passagens por outros jornais, já como repórter fotográfico, entrou para a equipe de O Dia, em 1992, e ali conseguiu um espaço que talvez não tivesse num veículo de perfil menos popular.
O jornal apostava alto na cobertura da violência carioca, uma realidade à qual ele, até hoje morando na mesma Tavares Bastos, já estava mais do que acostumado e soube retratar como poucos. “Conheço os caminhos, as regras de aproximação. Um ‘bom-dia’, ‘por favor’ e ‘obrigado’ ajudam muito”, ensina. A obstinação – “enquanto não consigo a foto, não sossego”, garante – e a capacidade de observação fazem parte do pacote. “Com o tempo, você aprende a antever situações”, avalia. Os prêmios obtidos na carreira (Tim Lopes, Vladimir Herzog, Nikon e Líbero Badaró, entre outros) e a divulgação de suas fotos em livros e exposições provam que a receita funciona.
Com esses ingredientes à mão, Severino se lançou no desafio de, mais do que documentar a fé e a religiosidade do brasileiro, retratar o cotidiano, os hábitos, os rostos e as expressões. A primeira imersão foi por Bahia, Pernambuco, Ceará, Sergipe e Pará.
“Antes de viajar, busco contatos, pesquiso os locais e os deslocamentos. Procuro chegar alguns dias antes para ir me habituando com a cidade, as pessoas, vendo os melhores locais para as fotos, e também para documentar a preparação da festa, o envolvimento dos fiéis e seu cotidiano”, conta. Banca as despesas do próprio bolso, num investimento de retorno financeiro no mínimo incerto. “Espero, pelo menos, patrocínio para um livro ou exposição”, comenta.
Lembranças da terra natal
A Pirpirituba natal, para onde nunca mais voltou, está nos planos de viagem, mas não nos próximos meses. “Perdi minha mãe há pouco tempo, a presença dela ainda é muito forte. Se for para lá agora, não vou conseguir me concentrar no trabalho”, diz. Da pequena cidade, guarda na memória uma cena que despertou nele a vontade de eternizar imagens.
“Lembro da minha avó varrendo a casa, que tinha piso de terra batida. A luz do sol atravessava a poeira que ela levantava. Achava lindo, tentava desenhar, mas não ficava muito bom. Acho que ali, mesmo sem saber nada sobre fotografia, comecei a virar fotógrafo”, imagina.
O tema, ele sabe, já foi muito explorado. “Conheço e admiro o trabalho do Tiago Santana, do José Bassit, do João Machado e de outros fotógrafos. A ideia é tentar algo diferente, buscar detalhes, uma aproximação maior com os personagens, fazer experiências com a luz”, explica. Para ele, a experiência de repórter fotográfico é valiosa, mesmo num trabalho de longo prazo.
“A gente mistura a rapidez à capacidade de aguardar o momento certo. Sabe se posicionar, se relacionar com as pessoas, sente quando a foto vai surgir. Acho que uma abordagem fotojornalística num projeto documental, num assunto rico e variado como a fé, pode ter um resultado muito interessante”, avalia.