Correios: como a privatização fere o Brasil

Geógrafo mostra, em livro essencial, como a empresa pública vai além do serviço postal: é também elo importantíssimo para conectar o país e articular políticas públicas. Em tempos de e-commerce, corporações globais agem para sabotá-la FONTE>https://out

22/06/2021 12:34

 

Este texto integra o livro Correios, logística e usos do território brasileiro (Consequência Editora, 2021), de Igor Venceslau, colunista de Outras Palavras, que você pode comprá-lo aqui. Leia também a coluna Outras Cartografias.

Elaborar uma reflexão e uma interpretação do correio brasileiro considerando a sua complexidade e as múltiplas funções que desempenha na atualidade reclama o tratamento do tema da cidadania. Para Milton Santos, a realização concreta da cidadania somente se torna possível com a componente territorial. Para tanto, propõe um modelo cívico do território em substituição ao modelo econômico vigente, que se funda a partir de dois elementos: a cultura e o território. Para o autor, faz-se necessário,

[…] de um lado, uma instrumentação do território capaz de atribuir a todos os habitantes aqueles bens e serviços indispensáveis, não importa onde esteja a pessoa; e, de outro lado, uma adequada gestão do território, pela qual a distribuição geral dos bens e serviços públicos seja assegurada. (SANTOS, [1987] 2007, p. 18)

Nesse modelo, o território seria pensado visando uma política redistributiva, de maneira a permitir o acesso aos serviços fundamentais independentemente do lugar onde se esteja. Essas ações seriam fundamentais para garantir uma cidadania completa, com a satisfação das necessidades mais básicas e essenciais no lugar onde a população habita. Para isso, é necessária uma mudança no uso e na gestão do território que oriente para lógicas que extrapolem a busca pelo lucro. Essa proposta sob um novo paradigma de organização e planejamento do território deve ser entendida como um direito inalienável do cidadão, já que deixar ao mercado a prestação de serviços básicos à vida contribui para o acirramento das desigualdades e a seletividade de acesso.

Em sua proposta, Santos ([1987] 2007) elabora uma distinção entre os “fixos públicos” e os “fixos privados”. Os fixos privados seriam aquelas infraestruturas construídas e controladas pelo mercado, cuja distribuição no território obedece à lógica da máxima lucratividade. Já no caso dos fixos públicos, sob o controle do Estado, a lógica de sua implantação difere do mercado e acompanha – ou deveria acompanhar – o suprimento das necessidades da população. Nesse sentido, os fixos públicos podem também ser considerados como “fixos sociais”. A instalação de novos fixos sociais nos lugares contribuiria, assim, para alterar as condições de vida da população.

Compreendendo o serviço postal brasileiro como um serviço público, haveria correspondência entre a topologia dos Correios e o modelo cívico do território? Ao propor uma política orientada para a criação de fixos sociais, Santos ([1987] 2007, p. 59) assegura que, “no caso das cidades, bastaria um projeto consequente para dotar a população de ‘fixos’ sociais. E no interior, a necessidade é de criar, ‘artificialmente’, núcleos destinados a servir às populações em derredor, ou fortalecer aglomerações já existentes…”. Ao instalar agências em todas as cidades brasileiras e, além disso, ainda criar unidades de atendimento em vilas e áreas rurais mesmo quando os lucros da unidade não cobrem as despesas de seu funcionamento, ao garantir a entrega domiciliar em todos os escalões da rede urbana – da metrópole às cidades ribeirinhas da Amazônia –, assegurando um serviço postal universal, os Correios se aproximam da noção de um modelo cívico, cujos fixos postais cumprem, em muitos casos, funções de fixos sociais.

Esse conjunto da materialidade e das ações dos Correios aponta para um modelo cívico do território, pautado na mais igualitária distribuição e na maior acessibilidade possível aos serviços públicos de qualidade, indispensáveis à consolidação da cidadania. Destarte, torna-se indispensável um planejamento territorial, assumido pelo Estado, que crie condições materiais e normativas para impulsionar uma logística a favor dos lugares, com vistas a suprir as necessidades cotidianas de populações inteiras marginalizadas pelo mercado.

A logística deve ser problematizada como uma atividade que, deixada exclusivamente ao mercado, mais se beneficia dos lugares e de suas virtualidades do que os favorece. Calcada no lucro, a logística empresarial é um modelo eficiente de drenagem dos recursos disponíveis nos lugares para os centros de gravidade da economia capitalista. O atual modelo que se impõe é aquele dos lugares para esse tipo de logística, onde as diferentes porções do território adequam suas infraestruturas, seu conteúdo técnico e normativo, e se rearranjam para permitir que a logística, espécie de Hermes contemporâneo, o deus da velocidade, possa reinar, especialmente para alguns. É urgente pensar num outro modelo possível, aquele de uma logística para todos os lugares, onde estes tenham as suas necessidades básicas supridas e favorecidas pelos progressos técnicos da humanidade.

Embora associada aos interesses de mercado na atual fase da globalização, a logística nasceu no seio do Estado e deve ser problematizada como uma ação estratégica para a execução de políticas públicas. A logística postal, por seus atributos espaciais (espaço banal) e temporais (cotidiano), além da própria natureza do objeto postal e a diversidade dos agentes envolvidos, não pode ser assumida pelo mercado, dada a própria limitação do escopo de ação dos agentes privados. Ela se revela estreitamente a fim de um modelo mais igualitário de distribuição de bens e serviços básicos à população, se se compreende o correio como parte da infraestrutura do território, e não apenas como um serviço complementar – o correio, mais que um operador logístico postal, é um elemento imanente do território brasileiro.

Por sua importância histórica na formação socioespacial brasileira, o correio é um importante elo de integração territorial, não somente nas extintas administrações postais, mas sobretudo hoje. Essa atribuição geoestratégica do Estado encontra na instituição postal uma característica peculiar que possibilita articular todos os domicílios sob uma mesma lógica. Como relegar ao mercado tamanha atribuição? Certamente não é possível avançar em direção a um modelo cívico ao reduzir a integração do território à imagem da topologia seletiva das corporações postais privadas. O correio brasileiro, com toda a sua complexidade, nos deixa pistas para entender a construção desse projeto de futuro.

Este trabalho contribui para o debate em torno do monopólio postal brasileiro ao demonstrar que esse quadro normativo assegura a sobrevivência da empresa nacional num cenário mundialmente competitivo e desigual, onde as corporações privadas se recusam a atuar nas regiões mais deficitárias, na perspectiva do mercado. A manutenção do monopólio estatal do setor postal significa, na prática, impedir que parte dos lucros sejam drenados para a iniciativa privada, cuja concentração em poucas empresas multinacionais levaria à inviabilidade da execução de políticas públicas que beneficiam a população brasileira. Nesse sentido, o fim do monopólio não é uma questão de interpretação, como querem os juristas, mas uma questão política e político-territorial. A própria atuação dos Correios em regiões e lugares não lucrativos já contempla o papel dessas agências, verdadeiros fixos sociais, como indutoras de políticas públicas e da cidadania, além da própria participação da empresa pública na criação de endereços. A logística dos Correios não pode ser diretamente comparada à das empresas postais privadas, pois o privilégio da empresa pública se torna, em realidade, a garantia da prestação dos serviços nas periferias do território. Mais que uma organização postal, os Correios são um agente estatal que possibilita a execução coordenada de políticas públicas. Portanto, as condições para essa atuação capilar em escala nacional devem ser asseguradas à luz de uma reserva de mercado que permita minimamente o equacionamento do custeio total da operação.

O serviço postal universal, como um direito, não pode estar dissociado do debate em torno do monopólio estatal, pois universalidade e livre concorrência são princípios contraditórios. Levar os serviços a todos os lugares passou a ser interpretado como uma atribuição do Estado, num cenário onde as empresas privadas não são obrigadas a cumprir nenhuma ação para com esse princípio. Ora, se a atribuição de manter um serviço universal, com todo o custo que esse projeto acarreta, continua sob os auspícios do Estado, por que deixar ao mercado os nichos mais lucrativos do correio, sobretudo os serviços expressos oferecidos entre as metrópoles? No Brasil, os Correios são um bom exemplo de empresa pública eficiente que supre as exigências de serviços mais rápidos e modernos sem abdicar de ações de integração e universalização.

Desse modo, ratifica-se a importância de manter um serviço postal público no Brasil, especialmente pelas características que possui. Os fluxos majoritariamente regionais de correspondências desmistificam a ideia de um fluxo global e recolocam a questão nacional na ordem do dia: quem pode assumir os serviços na Amazônia ou no interior da região Nordeste, senão o Estado? A constatação de que mesmo no interior do país os fluxos postais inter-regionais (longa distância) são minoritários se comparados às trocas dentro de uma mesma região também relativiza a noção de um correio a serviço das empresas do circuito superior, cuja concentração na metrópole paulista dá uma dimensão da divisão territorial do trabalho, mas está longe de traduzir a complexidade do correio como um fenômeno multiescalar. Nesse sentido, a diversidade de agentes que utilizam o serviço postal desloca o debate do âmbito corporativo, que se alimenta dos interesses dos grandes postadores (e-commerce, mídia impressa, bancos e operadoras de títulos de pagamento etc.) em fazer do correio a imagem de seus interesses, para alcançar na esfera pública o lugar de sua realização, permitindo a satisfação de todos os agentes independentemente de sua localização no território.

Os resultados apresentados convidam a um debate atual sobre o correio brasileiro considerando sua dimensão territorial, na encruzilhada entre os interesses externos e as necessidades internas do país. Amparadas em anseios geopolíticos e geoeconômicos, as empresas multinacionais de correio reproduzem a perversa ordem mundial vigente, que favorece exclusivamente os capitais concentrados nos países centrais e que busca, agora, o controle sobre os fluxos das cartas e encomendas de todo o mundo.

Neste momento, quando a noção de “território postal único” parece ter se tornado uma panaceia, as desigualdades socioespaciais não permitem falar em homogeneização. Há antes uma psicosfera criada sob a ideia de fluxos e agentes globais, de um lado, e redução da importância das fronteiras e dos territórios nacionais, de outro, que vem em auxílio do projeto violento das empresas multinacionais. Desde a divisão internacional do trabalho até as desigualdades regionais de consumo e as diferenças na disposição da materialidade do meio geográfico (principalmente a infraestrutura de transporte), é possível identificar no correio diferentes usos do território, que se traduzem em redes postais exclusivas, na diversidade dos prazos de entrega e na multiplicação dos serviços.

No âmbito da divisão territorial do trabalho, a elaboração de uma tipologia e topologia dos Correios atrelada à rede urbana possibilita empiricizar o correio e romper com uma noção de “expresso” como temporalidade instantânea e homogênea. O tempo expresso não pode alcançar o território igualmente porque é exigente de condições similares de fluidez, daí sua seletividade e predominância nos espaços metropolitanos. Assim, a construção de um modelo cívico excede a vorticidade (leia-se: vorti-cidade) dos serviços expressos para incluir as múltiplas temporalidades dos lugares, de todos eles. Por isso deve-se insistir no fato de que as empresas postais privadas, ao priorizarem os serviços expressos, estão aquém de um modelo de consolidação da cidadania.

Deve-se compreender a velocidade em sua dimensão política, juntamente com a técnica. Para que e para quem a rapidez ou a lentidão? Onde elas têm lugar? Na construção de um modelo cívico, importará mais o tempo das necessidades da população e dos lugares do que o tempo mais expresso, produtor de alienação. Como demonstrado, não é possível entender a rapidez da circulação sem a sua contrapartida, a lentidão, do mesmo modo que os fluxos materiais e imateriais não são excludentes. As modernizações se instalam seletivamente no território, fazendo com que os elementos novos convivam com aqueles que se tornaram velhos e a integração daí decorrente não seja sinônimo de fim das diferenciações.

Buscou-se contribuir para a compreensão do papel da informação no território, entendendo os fluxos informacionais como parte da circulação do correio e sem os quais não se pode falar em serviços postais atualmente, principalmente os expressos. Como apresentado, os fluxos materiais e imateriais devem ser analisados conjuntamente, o que explica que a difusão da internet foi equivalente ao aumento e à aceleração do fluxo postal, e não à sua superação; e, quanto mais os fluxos imateriais se tornam espessos, mais os fluxos materiais se densificam e vice-versa.

Na atualidade, quando do mail (correio) chega-se ao e-mail (correio eletrônico), o princípio de inviolabilidade da correspondência contrasta com a invasão de privacidade das empresas de comunicação virtual. O sigilo das mensagens eletrônicas é diariamente quebrado por empresas como Google, Facebook, WhatsApp e inúmeras outras, seja pelo acesso não autorizado ao seu conteúdo ou pela permissão dos usuários exigida pelas empresas nos contratos de utilização do serviço. Além dos indivíduos, os Estados também passaram a ser espionados por grandes empresas e por outros Estados em suas trocas de correspondências por meios virtuais. Nessa conjuntura, manter o correio público significa assegurar ao menos uma via “inviolável”.

A hierarquia não desaparece atualmente, mas adquire novos conteúdos e maior complexidade. Nem todos os lugares conseguem romper a amarra da trama escalar hierárquica, principalmente os espaços da lentidão dotados de sistemas técnicos menos modernos. Podemos considerar o território como agido, sofrendo a ação do Estado, do mercado e de diversos agentes que alteram o seu conteúdo e funcionamento por meio da norma e de diversas ações. Mas a materialidade, o conjunto das formas, continua nos autorizando a falar em um território ativo, pelo seu potencial de se impor às ações que se realizam. É a trama da diferenciação do território que faz com que cada lugar seja singular e que nem o tempo nem mesmo o espaço possam ser homogeneizados como um todo.

Com os resultados apresentados, novas perguntas e desafios de pesquisa podem ser formulados. Pelos objetivos estabelecidos, não foi possível analisar a logística postal na escala intraurbana e intrametropolitana, com a complexidade que envolve os serviços de entrega dentro das cidades, as rotas estabelecidas e o trabalho dos carteiros. Também foi apenas tangenciado o tema do e-commerce, esse novo produto do urbano exigente de fluidez e intensivo em informação.

frenesi da velocidade é uma palavra de ordem do nosso período. Enquanto os serviços mais expressos são seletivos no território, um correio mais lento continua servindo a milhões de brasileiros todos os dias, seja para o envio de cartas, encomendas, recebimento de faturas de pagamento ou mesmo a compra pela internet. Ubíquo e universal, esse correio, não do tempo do capital hegemônico que não pode parar, mas do tempo das pessoas que no seu cotidiano param para sorrir ao abrir uma correspondência, resiste e desafia a própria seletividade excludente do expresso no período atual.

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