Quando, em fevereiro passado, Barack Obama revelou ao mundo seu retrato oficial, adicionado à tradicional coleção da National Portrait Gallery, em Washington, o barulho dentro e fora do circuito das artes foi alto. A escolha do pintor Kehinde Wiley para a tarefa, porém, não teve nada de aleatória. A pose elegante e firme na cadeira frente à folhagem – com jasmim simbolizando o Havaí e agapanto lembrando a descendência queniana do ex-presidente americano – remete diretamente aos signos e à potência arrebatadora das fotografias do malinês Seydou Keïta, objeto de uma aguardada exposição que está em cartaz no Instituto Moreira Salles de São Paulo, e em agosto chega ao Rio de Janeiro.
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Filho de um carpinteiro, Keïta começou a fotografar aos 14 anos, ao ganhar uma máquina Kodak Brownie Flash do tio que viajara para Dacar, no vizinho Senegal. Rapidamente desenvolveu estética própria: luz natural, tecidos de fundo com estampas típicas da África Ocidental em contraste com as vestimentas locais tradicionais e uma maneira impressionantemente cuidadosa de posicionar seus personagens. “Os povos de Mali são culturalmente sofisticadíssimos e ele conseguiu transformar isto em imagem”, explica o artista e professor Ayrson Heráclito, entusiasta do assunto. Keïta retratou a diversidade e o cotidiano durante a transição da colônia francesa para o país independente e, com o sucesso do negócio, passou a inserir nas cenas elementos que simbolizavam luxo e poder: relógios, canetas, rádios, vespas, carros. “Pela primeira vez a imagem da África era construída por um africano negro, e não por um colonizador branco com uma visão estereotipada. Nascia, ali, uma importante postura de empoderamento”, completa Heráclito.
Keïta reinventou o retrato com precisão e apuro, influenciando uma série de artistas a partir de então. Seu maior discipulo é o igualmente malinês Malick Sidibé, que trabalhou nos anos 1960 e 1970. Primeiro africano negro a ganhar o Leão de Ouro na Bienal de Veneza, Sidibé registrou o clima de otimismo e as mudanças culturais por que o país passou pós independência: mostrou ao mundo uma juventude alegre, orgulhosa, embevecida de senso de pertencimento e extremamente ligada em moda. Era um momento, vale lembrar, de conexão entre negros africanos e americanos – Sidibé clicava nas festas em Bamaco e nelas tocava James Brown. “Havia um sentimento de identificação, como se houvesse um retorno da diáspora”, esclarece Heráclito. Mas foi o camaronês Samuel Fosso quem abriu alas para uma série de fotógrafos que produzem autorretratos como intuito de criticar a visão branca estereotipada da África e destacar personagens relevantes da história do continente – sempre influenciados pela estética de Keïta. Classificado como a “Cindy Sherman africana”, Fosso se transveste brincando com códigos culturais para criar arquétipos e questionar gênero e identidade. Assim como ele, outro artista que encarna heróis da história negra é o senegalês Omar Victor Diop. Inspirado por telas históricas, inclui ícones do universo do futebol nas cenas para atualizar as discussões sobre raça. Já a sul-africana ZaneleMuholi reivindica mais do que empoderamento quando o tema é o corpo negro: ela ressalta a delicadeza. Na série Somnyama Ngonyama, Muholi inverte o jogo de signos do mestre Keïta e faz 60 autorretratos com materiais do dia a dia.
Se logo após a independência de Mali a ligação com os EUA era intensa e todo mundo só pensava em dançar le twist, a ficha também caiu do lado de cá do Atlântico. A influência dos fotógrafos africanos reflete-se na produção de muitos pintores americanos afrodescendentes. Uma bandeira comum? Mostrar ao mundo todo o potencial da cultura negra. E aí voltamos para Obama e Kehinde Wiley. Filho de nigeriano, Wiley ficou conhecido por pintar só afro-americanos que encontra nas ruas de Nova York, em poses imponentes e heroicas – a referência a grandes mestres da pintura é frequente –, sempre inseridos no universo do design têxtil da África Ocidental. “Meu pai é do oeste da África, meu corpo é do oeste da África. Os corpos negros que viajam pela água são essenciais para o meu trabalho atual”, explicou o artista ao jornal The Guardian. Parece significativo, então, que ele e Amy Sherald (responsável pela pintura de Michelle Obama) sejamos primeiros negros a representarem um ex-presidente e ex-primeira-dama no país.
Eles não são únicos, porém. A força da cultura e o diálogo com os fotógrafos precursores aparece, ainda, nas obras de Kerry James Marshall. Assim como Wiley e Omar, Marshall cita a própria história da arte para reescrever narrativas onde o negro ganha papel de nobre protagonista. “Quero demonstrar que a negritude pode ter complexidade, profundidade e riqueza”, defendeu ao The NewYork Times o artista, que mês passado apareceu no Instagram abraçando o casal Obama. Mickalene Thomas, por sua vez, leva ao extremo a ideia do “mix de estampas” proposto pelos precursores malineses, romantizando conceitos de feminilidade e poder. As personagens de suas pinturas são provocativas e seguras de si. Musa para um, musa para todos: Mickalene já havia feito um retrato da ex-primeira dama em 2010. Parece que o casal Obama entende mesmo de arte...