Ninja tem 42 anos e é toxicodependente há 20. Hoje em dia vive em Olhão numa casa abandonada que, para ele, se assemelha a um paraíso quando comparada com as celas por onde passou ao longo de duas décadas. Recebe em casa muita gente, gente como ele. Teve muitas mulheres mas só a uma é fiel: à sua heroína.
Dos cantos da casa brotam histórias feitas em estilhaços. Histórias com gente dentro, retalhos de outras vidas que inundam o vazio da sua. É delas colecionador. Ao fundo o corredor. Umas escadas deixam adivinhar o terraço. É dali, com as açoteias de Olhão como cenário, que todos os dias quer faça sol, quer faça chuva, numa espécie de casa de banho improvisada ao ar livre que lava o corpo. A alma, há muito que o deixou de fazer!
Num velho lava-loiça apinham-se pratos e talheres necessitados de uma lavagem. É neles, que depois de uma “lambidela” de água serve as refeições que a caridade dos vizinhos permite. Na verdade come pouco. Raramente tem fome. A sua cara de menino bonito, foi-lhe o tempo esmorecendo pelas veias adentro. A barba e o cabelo rebeldes disfarçam as marcas da idade e da dependência. O corpo seco e definido é o único vestígio das artes marciais que praticou. Tem o ego destroçado, e vergonha é a leitura que retiro do seu olhar. Veste umas calças de um castanho terra, as suas favoritas, talvez por serem as únicas. Sustenta-as no corpo ressequido com um cinto que encontrou algures. Imune ao frio exibe o tronco nu, onde tatuagens, símbolos indeléveis de um período em que sonhar era permitido, estão tão embaciadas quanto a sua própria lucidez.
Sem qualquer autorização apoderou-se há cerca de um ano daqueles muros decadentes que em tempos viram uma casa. A primeira divisão é apertada, mal se consegue andar nela. Numa das paredes, um quadro de uma qualquer Nossa Senhora e dois cachecóis da selecção nacional são a minimal decoração daquela parede rachada. Noutra, há um relógio redondo. As horas estão certas, mas para Ninja o tempo mede-se apenas pelo do próximo chuto.
A mesa de Ninja é uma pequena babilónia. Seringas, espelhos partidos, isqueiros, preservativos, cinzeiros a transbordar de cinza, pontas de cigarros, garrafas de plástico e uma navalha compõe o décor daquela peça de mobiliário onde o seu dono se senta sempre, mas sempre, de frente para a porta. Hábitos herdados por quem não acha graça a surpresas das autoridades.
Ninja desnuda-se de preconceitos. Assume vícios e crimes. Viveu durante quase vinte anos atrás das grades por onde o sol espreitava sem nunca brilhar. Conheceu praticamente todas as cadeias do país. Tem a memória turva e revisitar o passado é, às vezes, um exercício doloroso. Semicerra os olhos e engrossa a voz quando invoca o tempo de cárcere. À noite, quando a noite se faz verdadeiramente noite, afunda-se em pesadelos de arrepiar. São sempre iguais. É arrastado no escuro por estreitos corredores. Golpeiam-no com facas em lutas com outros condenados. Na casa de banho enoja-se com as violações. Submetem-no. O silêncio é um rugido que nunca chega a ser escutado. A solidão é uma doença mortal. Acorda sempre esbaforido, suado e ansioso.
Não há luz eléctrica naquela casa. Ninja dorme na sala, não gosta de dormir no quarto. De lá vê o quintal e sente na face a brisa que à noite sopra. Sente-se a salvo dos fantasmas que o perseguem. Suspira. Procura o sono de novo. Vai dormindo aos soluços. Vive a prestações, com juros demasiado altos.
A primeira vez que experimentou a heroína já mal se recorda. Vasculha na memória esse momento, mas este é pouco perceptível. Diz que namoram há mais de meia vida, mas que ela o trai desde o primeiro dia. Quando se conheceram, fumou-a. Não guarda a sensação do beijo apenas do vómito que de si se apoderou. Sentiu-se mal.
Passou a sentir-se pior ainda quando a não tinha por perto. Era uma relação de: nem contigo, nem sem ti. A sua ausência provoca-lhe espasmos, arrepios e dores infernais pelo corpo. Experimentou outras parceiras: a pastilha, a erva, a cocaína…mas por nenhuma se apaixonou desta maneira. É um amor incondicional!
Passa os dias a pensar na forma de se encontrarem para que ela se entranhe no seu corpo e lhe abrande o sofrimento. Ela proíbe-o de amar o resto. Assassina-lhe os sonhos e a vontade. Quere-o só para si mas tem outros amantes. Muitos mais aliás. Outros “Ninjas”! Alguns visitam-no para a provar com ele. É a heroína das suas histórias que até pelo nome mente.
As visitas são breves. Aquelas almas-penantes nada têm de seu, às vezes nem nome, apenas uma alcunha, apenas um ruído pelo qual que respondem. Entram e saem só com uma certeza em jogo. Voltarão. Voltarão sempre, dia após dia, noite após noite, semana após semana, vida após vida.
Rituais aqui são perpétuos. Está na hora do “caldo”. Ninja, por norma, injecta uma dose apenas, mas às vezes arrisca dois pacotes. Não há medo de morrer. Mergulha a seringa na veia sem suspender a conversa. Fá-lo com uma naturalidade assustadora. Respeitando a lentidão que o ritual requer vai esgotando a heroína da seringa. Quando esta se extingue Ninja volta a preenchê-la sugando o sangue que corre pela veia eleita, no final devolve-o ao corpo pela mesma via. Agora sim, está em paz.
Video by: José Ferreira/Post Productions by: David Marques
Text by: Catarina Mira(catarinadsmira@gmail.com)text Translated by: Mariana Luz(mariana.mluz@gmail.com) and