'Sem dramas': a presença avassaladora de Lélia na obra de Sebastião Salgado...

FONTE:https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/03/08/sem-dramas-a-presenca-avassaladora-de-lelia-na-obra-de-sebastiao-salgado.htm

09/03/2022 00:56

 

Angelica Santa Cruz

Colaboração para o TAB, em São Paulo

08/03/2022 04h00

 

Um dos maiores fotógrafos do planeta, o brasileiro Sebastião Salgado já presenciou os efeitos inomináveis da estupidez humana. Percorreu 130 países, passou por cidades arrasadas por conflitos, viu multidões de refugiados famintos e doentes. "Correu perigo. Mas está aí, bonzinho", constata sua mulher, Lélia Wanick Salgado.

Em cinco décadas de casamento, ela se acostumou a levá-lo e buscá-lo no aeroporto, em cada uma dessas aventuras mundo afora -- e só uma vez tomou um susto, ao recebê-lo na volta de uma reportagem especial em Amsterdã. "O aviãozinho que o trouxe chegou no campo de pouso. De repente, a porta abriu e ele saiu mancando muito. Fiquei assustadíssima, até saber que ele tinha sido atropelado por uma bicicleta. Falei: 'pô, Tião! Tanto bombardeio e você me vem detonado com uma bicicleta?'", conta ela, às gargalhadas.

Lélia tem 75 anos, cabelos curtos e brancos, dois filhos, dois netos. Vive às voltas com a casa cheia de amigos do mundo inteiro, gosta de cozinhar e de ler, aproveita as horas livres para tocar Chopin e Beethoven no piano do apartamento onde mora, em Paris. E, aos olhos do grande público, vai aos poucos deixando as brumas dos bastidores.

As mais de 20 mil pessoas que já passaram pela exposição "Amazônia- Sebastião Salgado", em cartaz no Sesc Pompéia, por exemplo, espiaram um conjunto de 205 fotografias que mostram a floresta e seus povos -- todas em preto e branco, com o tom épico que é o carimbo do fotógrafo. Mas também deram de cara com uma presença avassaladora de Lélia. Na escolha das fotos e na maneira como elas foram distribuídas, suspensas no ar e em alturas diferentes, para simular a visão do observador dentro da floresta; nos espaços em forma de oca, onde os visitantes se sentam para assistir vídeos com a fala de lideranças indígenas; na trilha sonora composta pelo músico francês Jean-Michel Jarre em cima de sons amazônicos -- é tudo coisa dela.

 

 

Lélia concebeu todos os detalhes de uma cenografia feita para que os brasileiros que vivem de costas para a Amazônia possam ter pelo menos uma leve suspeita do que é emburacar nessa imensidão.

Lélia Salgado - Sebastião Salgado - Sebastião Salgado
 
Lélia Salgado
Imagem: Sebastião Salgado

Trabalho invisível

Além de ser mulher, e de ser mulher de um homem famoso, Lélia se dedicou durante décadas a um trabalho simbiótico com o marido. É um combo com alta probabilidade de desembocar no anonimato.

"Não foi uma coisa deliberada, veio vindo com a vida, mas comecei a achar que tenho que mostrar o que faço. Por exemplo: tem 40 anos que trabalho com a concepção e o design de livros de fotografia e não tem muito tempo que comecei a colocar meu nome na primeira página. Agora, nessa exposição, meu trabalho também apareceu mais porque eu queria que as pessoas soubessem como ela foi imaginada, para ver se elas sentiam a ideia de imersão na Amazônia que eu queria passar", explica.

O grosso do trabalho de Lélia é na retaguarda. Mas veja só que retaguarda. Foi dela a ideia de replantar uma floresta inteira nas terras completamente devastadas de uma antiga fazenda de gado que Sebastião Salgado herdou do pai, na cidade mineira de Aimorés, no vale do rio Doce. "E foi a melhor ideia que eu tive na vida. No começo, achei que era só plantar umas coisas e já fazer a regeneração natural da área. Mas um amigo, engenheiro florestal, fez um projeto de reflorestamento e disse que a gente teria que começar com dois milhões de mudas. Olha o susto!", diz.

O amigo conseguiu as primeiras mudas, Lélia e Sebastião pagaram trabalhadores para fazer o plantio, a coisa foi seguindo. "A gente não sabia plantar direito. Chovia, a gente perdia tudo. Perdemos 60 % da primeira leva. Depois, 40%. Agora chegou em 10%, que é o normal".

Duas décadas depois, a Mata Atlântica reapareceu vistosa nos 608 hectares da propriedade -- um grau de recuperação antes impensável em áreas tão degradadas. "É uma floresta criança, mas linda, com árvores altas! A água voltou, os animais voltaram. Veio jacaré, jaguatirica, pássaros. Costumo dizer que os bichos se falam entre eles, espalham a notícia. Que pretensão achar que somos os únicos com algum tipo de racionalidade, hein?", comemora.

Em 2008, Lélia foi a Papua Nova Guiné com Sebastião - Sebastião Salgado - Sebastião Salgado
 
Em 2008, Lélia foi a Papua Nova Guiné com Sebastião
Imagem: Sebastião Salgado

Negócio de família

A ideia de replantio de Lélia derivou no Instituto Terra, organização que puxou uma fila de recuperação de duas mil nascentes e de milhares de hectares de terras devastadas no vale do rio Doce. "Com a nossa experiência, a gente vai nos proprietários rurais das terras arrasadas, explica como é o projeto e pergunta se eles querem também. Claro, todo mundo quer água de volta -- tem até lista de espera." Lélia explica ao TAB que o instituto escolhe duas nascentes por fazenda. Depois, fornece 300 mudas para o fazendeiro plantar e arame farpado, para ele fazer uma cerca e deixar o gado longe da área. Também formam 20 técnicos florestais por ano, que depois dão suporte para esses outros fazendeiros.

O projeto consumiu anos de dedicação do casal Salgado. "Quando meus pais começaram esse replantio, eu tinha uns 18 anos. No início achava chatíssimo, porque eles passavam todas as férias trabalhando nisso, e eu queria ficar com eles. Com o tempo, fui entendendo o que esse projeto tinha para oferecer ao mundo, e acabei me envolvendo", conta o cineasta e roteirista Juliano Salgado, 48, filho mais velho do casal. Em 2015, ele foi indicado ao Oscar pelo filme "O Sal da Terra", documentário sobre o pai, que dirigiu junto com o alemão Wim Wenders. Hoje se divide entre seus projetos e o trabalho voluntário no Instituto Terra, do qual é vice-presidente.

A coisa andou, mas Lélia anda pedindo mais jogo. "A gente fez uma estatística de que tem mais ou menos 370 mil olhos d'água na bacia do rio Doce. Estamos quase assinando um convênio para recuperar cinco mil. Mas, olha que pretensão, temos o projeto de um dia recuperar todas. Tenho certeza de que a gente vai conseguir. Claro, eu não vou estar mais aqui para ver o resultado. Mas vou mandar água de chuva lá do céu, aqui pra baixo", brinca.

Durante anos, Lélia foi a única mulher do conselho diretor do Instituto Terra. E esse não é um dado aleatório. "Muitas vezes, ela fala uma coisa e respondem para o meu pai. Imagina... Não estou nem falando dos trabalhadores, estou falando do conselho diretor mesmo. Principalmente no Brasil, essa coisa de querer enxergar só o homem é muito pesada. A minha mãe sempre teve um estilo muito forte, mas de uns anos para cá, está afirmando mais isso", diz Juliano.

Lélia Salgado com o filho Juliano, na França, em 1976 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
 
Lélia Salgado com o filho Juliano, na França, em 1976
Imagem: Arquivo pessoal

Do sufoco à glória

A dobradinha entre Lélia e Sebastião Salgado começou quando ela tinha 18 anos e, ele, 20. Se conheceram na Aliança Francesa de Vitória, no Espírito Santo, onde ela estudava francês e ele trabalhava, ajudando na secretaria. Três anos depois, casados, mudaram para São Paulo. Ele começou sua formação em economia e, ela, em música. Foram tempos cinzentos.

Quando Lélia fez 21 anos, os pais dela morreram, em um intervalo de apenas três meses. O pai, em um incêndio no prédio onde trabalhava. A mãe, de câncer. Embora sem filiação formal com organizações de esquerda, ambos militaram contra a Ditadura Militar e, por isso, foram obrigados a sair do Brasil. Em 1969, chegaram na França, com uma mão na frente e outra atrás.

O casal foi aceito na Casa do Brasil, uma das 23 residências internacionais para estudantes da Cidade Universitária de Paris. Sebastião fazia preparação para um doutorado em Economia, Lélia começou a cursar arquitetura. Era uma rotina de estudos e de militância.

Os universitários formavam grupos para receber outros exilados, alguns deles destruídos por torturas. "A gente distribuía panfletos, organizava conferências, cobrava ingressos para festas e levantava dinheiro para cuidar deles. Nesse ambiente, aprendemos um pouco sobre a força da solidariedade, vimos que não adianta pensar só nas nossas coisinhas, porque a vida não é só nossa", afirma ela.

José Saramago e Lélia Salgado em Lanzarote, Ilhas Canárias, em 1996 - Sebastião Salgado - Sebastião Salgado
 
José Saramago e Lélia Salgado em Lanzarote, Ilhas Canárias, em 1996
Imagem: Sebastião Salgado

A certa altura, Sebastião Salgado arranjou um bom emprego como economista, em Londres — Lélia ficou entre a Inglaterra e a França, para terminar o curso de arquitetura. Dois anos depois, ele resolveu trocar de pele e se dedicar apenas à paixão pela fotografia.

Até conseguir construir seu nome, foi um perrengue. "Hoje as pessoas olham Sebastião Salgado e têm a impressão de alguém riquíssimo, que representa aquela coisa da alta cultura fotográfica. Mas ele passou por muitas dificuldades até chegar em um nível de reconhecimento que traria alguma estabilidade econômica para a família. Era arriscada a vida de fotógrafo", lembra Juliano Salgado.

Às vezes, Lélia acompanhava o marido em suas expedições fotográficas -- nessa época, em roteiros pensados para o dinheiro curto. Até que teve o segundo filho, Rodrigo, que nasceu com síndrome de Down. "Ele tinha muitos problemas respiratórios, então fiquei em casa cuidando dele por um ano e meio. Mas trabalhei muito com o Sebastião e ajudei outros fotógrafos a vender fotos". Por causa dessa rede de contatos, foi chamada por um amigo para participar da criação de uma revista de fotografia.

A publicação foi vendida e eles abriram outra. Lélia pensava em abrir uma galeria, mas foi convidada para ajudar na montagem da galeria da agência Magnum, fundada por Henri Cartier-Bresson. Nos dois anos em que ficou por lá, levantou 24 exposições. "Eu vasculhava todo o material dos fotógrafos e criava mostras. Isso era genial. Mas a parte de tomar conta da galeria, de fazer mesuras para ver se as pessoas compravam, o lado do glamour, não era para mim. A maior maravilha da experiência foi saber: não suporto galeria. Que bom que não montei a minha!".

Nesse ponto, começou a associação estreita entre o trabalho de Sebastião e Lélia -- e a importância dela na construção da trajetória do fotógrafo mais aclamado do mundo.

Em 1986, Lélia aproveitou uma edição do mês da fotografia em Paris, cujo tema era América Latina, e montou na Maison de l'Amérique Latine — um casarão classudo na região chique do Boulevard Saint-Germain — a exposição "Outras Américas", só com fotos de Sebastião Salgado.

"Nesse momento, a minha mãe resolveu que alguma coisa precisava acontecer para dar uma decolada na carreira dele, que eles tinham que parar de passar perrengues. Ela juntou todos os amigos deles, que eram do mundo dos exilados em Paris. Eles começaram a fazer campanhas de panfletagem, do mesmo modo que faziam na militância, para chamar as pessoas para a exposição. E foi um puta sucesso! Ela ganhou o prêmio do público e do júri. A partir daí eles juntaram forças, mais ainda. Lembro bem deles nas férias, organizando juntos a sequência das fotografias para a exposição seguinte", diz Juliano.

O casal Salgado no Royal Ontario Museum, em Toronto (Canadá), em 2013 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
 
O casal Salgado no Royal Ontario Museum, em Toronto (Canadá), em 2013
Imagem: Arquivo pessoal

'Sem dramas'

De saída da Magnum, Lélia decidiu empreender. Começou a editar livros, ajudou a fundar e dirigiu durante quatro anos um festival de fotografia na Ilha da Reunião. Na paralela, trabalhava com o marido. Quando começou a concepção do projeto para o livro "Trabalhadores", viu que precisaria ficar só com ele. "Sebastião queria fazer uma arqueologia de um novo mundo industrial, com os países desenvolvidos do hemisfério norte levando as indústrias obsoletas para a América Latina e a África". Era um projeto grandioso, que exigia muito dinheiro.

O casal achou uma grande jogada. "Com um conceito muito coerente porque, afinal de contas, é jornalismo, a gente oferecia um contrato para revistas. Elas davam uma quantidade de dinheiro anualmente e publicavam fotos e reportagens com dez, quinze, vinte páginas. Na época, estava todo mundo interessado no tema. Isso viabilizou as expedições dele", lembra Lélia.

Em alguns dos projetos seguintes, o casal replicou o modelo -- mas a cada vez fazia também um grande livro e exposições que rodavam o mundo. O processo foi disseminando mais e mais o nome do fotógrafo.

Lélia participa da escolha dos projetos, da produção das expedições, de boa parte das viagens. Quando o marido volta para casa, espera ele fazer um primeiro pente-fino nas fotos e depois assume a barca. Organiza as fotografias em uma lógica editorial, desenha os livros, acompanha o processo nas gráficas, organiza e concebe a cenografia das exposições. E, enquanto ele se embrenhava em terras distantes, fotografando por longos períodos, segurava a bucha da família. "Mas sempre sem dramas", diz.

Lélia Salgado em visita à Namibia em 2005 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
 
Lélia Salgado em visita à Namibia em 2005
Imagem: Arquivo pessoal

Lélia costuma contar um episódio em que, ainda na década de 1970, levou Sebastião Salgado até o aeroporto, para fotografar um conflito em Luanda, em Angola. Voltou dirigindo, aos prantos. "Estava com muito medo de que alguma coisa acontecesse com ele. Chorava tanto que não conseguia dirigir. Aí parei em um posto e disse a mim mesma: ele está feliz, indo fazer o que gosta, entrando na sala Vip, talvez tomando champanhe. E você aí chorando. Deixa de ser besta, Lélia. Espera acontecer, pra depois sofrer. Aí parei de me entristecer com o risco que ele corria", diz. E completa: "Mas também tive uma vida muito rica. Pude ser uma pessoa livre. O fato dele viajar muito ajudou a gente a estar junto até hoje, porque era uma coisa sempre renovada, nada se perdia no cotidiano".

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