'Pior mito sobre câncer é achar que de alguma forma somos culpados', diz vencedora do Pulitzer.Por Irene Hernández Velasco - BBC Mundo

Anne Boyer relatou sua experiência em um livro.Fonte:https://www.correiobraziliense.com.br/ciencia-e-saude/2021/09/4947945-pior-mito-sobre-cancer-e-achar-que-de-alguma-forma-somos-culpados-diz-vencedora-do-pulitzer.html

14/09/2021 19:08

 A poetisa e ensaísta americana Anne Boyer tinha acabado de completar 41 anos quando foi diagnosticada com um dos piores tipos de câncer de mama, para qual o tratamento era muito agressivo.

Na época, ela ganhava um salário modesto dando aulas e não sabia muito sobre câncer. Desde então, ela diz que aprendeu muitas coisas - especialmente sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos.

Boyer diz que a lógica capitalista muitas vezes faz as pessoas acharem que quem tem câncer em parte o merece. Ela também descobriu que o câncer é cercado por mitos, como a ideia de que uma atitude positiva pode ajudar a curá-lo. E percebeu que a linguagem usada para falar sobre o câncer é problemática, porque sobreviver ao câncer não é vencer uma corrida e morrer não é perdê-la.

Depois de ser submetida a uma dupla mastectomia, e quase sem conseguir ficar em pé, Anne Boyer foi mandada para casa sem poder passar uma única noite no hospital, exatamente como acontece com aproximadamente 45% das mulheres que se submetem a cirurgias nos Estados Unidos.

Com as bolsas de drenagem ainda costuradas ao peito, dez dias após a cirurgia ela já estava de volta trabalhando como professora.

Tudo isso, ela relata, a fez repensar a mortalidade e as políticas de gênero relacionadas à saúde, a distribuição diferenciada da dor e o sofrimento com base na condição social e de gênero. O resultado de tudo isso é seu livro The Undying (algo como 'imortal', em tradução livre), que ainda não tem edição no Brasil.

Vencedor do Prêmio Pulitzer em 2020, o livro mistura autobiografia, filosofia, poemas, textos antigos, dados, estatísticas e estudos científicos.

A BBC Mundo entrevistou a autora, que participa do festival literário Hay Festival Querétaro, no México.

 

Mulher com camiseta aberta toca o próprio seio
Getty Images
O autoexame é importante para detecção de problemas em estágio inicial

 

BBC News Mundo - Em The Undying, você reflete sobre a mortalidade, um assunto que é quase tabu. Por que não queremos pensar sobre a morte e por que deveríamos?

Anne Boyer - Os EUA têm uma relação curiosa com a morte. Seus filmes, programas de televisão e videogames estão repletos de mortes violentas. Cadáveres enchem as telas e isso é vendido como entretenimento. Nossa linguagem é frequentemente rude e violenta, e nossos militares e nossas indústrias levam a morte ao resto do mundo. No entanto, quando se trata da própria morte - não de sua versão cinematográfica - nós a escondemos, desinfetamos, terceirizamos, pois ela entra em conflito com a filosofia da positividade a todo custo. Se não pensarmos sobre a morte de uma forma realista, ficamos com essas versões prejudiciais e manipuladoras dela.

BBC News Mundo - Ainda existem muitos mitos sobre o câncer. Qual é o pior?

Boyer - O pior mito é pensar que as pessoas têm câncer de alguma forma são culpadas por isso. Nas últimas décadas também cresceu a ideia de que se uma pessoa for positiva e tiver uma boa atitude perante a vida, ela pode superar o câncer. Isso não é verdade. Atitudes não causam câncer, nem curam. O mito da atitude positiva resume-se principalmente à imposição de uma norma machista, ou seja, a ideia de que as mulheres devem sempre ser alegres e sorrir mais.

BBC News Mundo - No livrovocê também explora a relação do capitalismo com a saúde. A lógica do capitalismo se impõe sobre o bem-estar?

Boyer - O capitalismo americano impôs uma lógica perversa de individualismo extremo e corrosivo, que coloca todos em competição contra todos e, às vezes, as pessoas contra si mesmas. Os doentes, deixando de ser entidades capitalistas "produtivas" e competitivas, são vistos como perdedores, a menos que sobrevivam e, desse ponto de vista, os mortos são os perdedores e os sobreviventes são os sujeitos capitalistas adequados.

No esquema capitalista, acredita-se que tudo é uma opção e, portanto, que o câncer também é uma opção. Essa retórica esconde que, na realidade, muito do que nos acontece não é o resultado de nossa escolha, é um conjunto de condições compartilhadas, de forças históricas, de estruturas político-sociais.

Mas quando isso é escondido de nós, ficamos tão perturbados que começamos a acreditar que cada um de nós tem controle até mesmo sobre a divisão patológica de nossas células.

BBC News Mundo - O câncer hoje é mais conhecido do que nunca e a medicina tem feito grandes avanços, mas, paradoxalmente, para muitos pacientes com câncer nos Estados Unidos hoje, é muito difícil ter acesso a um tratamento adequado. Por que o setor de saúde se tornou tão desumano?

Boyer - A resposta simples é: lucro. Durante a pandemia do coronavírus, os profissionais de saúde parecem ter experimentado as pressões destrutivas desse modelo lucrativo, crise de saúde mental, esgotamento, como nunca antes. Se a medicina americana não está servindo nem para médicos, enfermeiras e outros trabalhadores, a questão é: para quem ela serve? E quem decidiu que deveria ser assim? Espero que uma das consequências desta crise seja um clamor contra as condições dos sistema que tornam o acesso à saúde impossível para pacientes e desgastante para trabalhadores da saúde.

 

Mulher de diferentes idades em uma roda de conversa
Getty Images
Boyer diz que compartilhar a experiência é essencial

 

BBC News Mundo - Por que você não gosta de campanhas como o 'outubro rosa', com o uso da cor em apoio a pacientes com câncer de mama?

Boyer - Não me oponho ao conforto e à solidariedade que podem ser encontrados no uso de um símbolo visual para unir pessoas que lutam contra a doença, mas a cultura da 'fita rosa' pega um apoio genuíno e positivo e o perverte em uma estrutura de exploração de lucro. Não precisamos de fitas rosa em produtos de consumo, muitas vezes produzidos com substâncias prejudiciais à saúde. No momento em que nossa dor se torna um produto, temos que dizer não.

BBC News Mundo - Em seu livro, você diz que não encontrou o que procurava nos textos clássicos sobre câncer, como os da escritora Susan Sontag, quando recebeu o diagnóstico. Por quê?

Boyer - Eles me ajudaram, mas o que não consegui encontrar neles é um relato da versão contemporânea do câncer: a doença vivida no mundo da informação, das telas, sob as forças extremas do lucro que dominam o sistema de saúde dos Estados Unidos. Minha esperança ao escrever este livro foi de que ele se junte a outros livros existentes, como um relato de nosso tempo.

BBC News Mundo - Durante sua doença, você encontrou muito apoio em vídeos do YouTube de outras mulheres com câncer. Por que esses vídeos a confortaram?

Boyer - É muito difícil explicar o efeito que aqueles desconhecidos tiveram sobre mim. Por isso escrever essa parte do livro foi particularmente desafiador para mim. Outras pessoas que sofreram com a mesma doença me deram uma educação que nenhum médico ou enfermeira poderia me dar: uma educação sobre sentimentos, sobre como morrer e como viver.

BBC News Mundo - Por que você diz que a solidariedade e o compartilhamento da dor são tão importantes?

Boyer - Se não compartilharmos a dor, corremos o risco de sermos destruídos por ela. Podemos acreditar erroneamente que estamos sós. A dor tende a nos amarrar, a menos que reconheçamos que é uma experiência compartilhada. Recentemente, ouvi uma prece budista: 'Que eu tenha sofrimento suficiente para despertar em mim a mais profunda compaixão e sabedoria possível'. Uma dor compartilhada, um sofrimento compartilhado, nos ajuda a transformar essa dor em compaixão, nos ajuda a compreender a experiência coletiva do ser humano.


Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Compartilhas Noticia

Tags

Comentários

Comentários

Escrever Comentário

54837

Subscribe to see what we're thinking

Subscribe to get access to premium content or contact us if you have any questions.

Subscribe Now