Certa vez, ouvir Cássio Vasconcellos, ---amigos que somos durante muito tempo--- algo imaculado tipo “a maior conquista é sempre uma aspiração”. O Cassio, na fotografia brasileira é um dos fotógrafos que eu mais admiro. Há outros, claro, mas ele é um predestinado; em 1983, me assustei quando vi uma imagem sua representando uma mão estendida sobre um banco de ônibus, assim tão desprevenida em sua simplicidade, que sua aparição sustentada daquela maneira, me impressionava sobremaneira. Sabemos, que o susto numa criação sufragada na arte criadora, é um dos principais sustentáculos que nos emotiva e nos desliza sobre o gelo incrível do impasse, o sobrenatural que nos impele e fascina. Havia no ar uma intenção de isolamento, solidão, desamparo. Existia a impermeável permanência de um simples pedaço de um membro do nosso corpo humano, assim decepado, só, num grito inaudível, grampeado intramuros, colhido no canteiro de obras psicótico de um preto-e-branco. Fiquei assustado e no ar.
Outra vez, saindo de sua boca, escutei emitida pela voz desse autor, algo que me pus a pensar.Se referia a questão sobre a questão da investidura, liberdade de expressão, direito de se fazer, domínio, competência, sistema pessoal de impor o seu trabalho e, consequentemente, ter o reconhecimento ainda em vida, e posteriormente poder usufruir dessa outorga, de ter sua obra comprada por quem se achar tocado no emocional pessoal e absolutamente intransferível. Ele acha que é uma ação dadivosa essa de um trabalho autoral ser pesquisado e finalmente comprado por colecionadores ou interessados em emoções tangidas por hábeis artistas seja de que fronteira for. A arte é o limite.
Referência essa percebida em sua rebeldia em não ser mais um, na busca e procura em se descobri auto-suficiente naquilo que acredita, ser um autor. A fotografia possue infinitos caminhos e um deles é ter essa certeza do que é, e do que quanto pode valer neste mercado em constante evolução; a ponto de um dia chegar junto a mim e confessar de como era bom ser reconhecido e ter uma cópia do seu trabalho comprado por alguém que compartilha com seus ideais autorais. Acredito que com esta revelação emocionado que estava, pelo denodo em vê-lo, em expor-se assim, tão verdadeiramente, reconhecendo-se sem erro ou culpa, repensei a minha estrada diferente da dele, mas que nem por isso, meu trabalho não deixe der ser uma busca de extratificação nada bizarra, calcada nos elementos naturais que nos circundam amiúde, em qualquer lugar que se vá. E, lá, poderemos encontrar um abstracionismo construtivo, ao mais doce lirismo impressionista, sem falar da minha extensa história, mais que afetiva, atuando na instrumentação negroide, que compões meus retratos mais singulares das famílias, homens, mulheres, velhos e crianças nessa atitude política. E toda arte se realiza na forma.
Tenho vendido muitas das minha peças visuais embaladas no apreço “fine art”, com cópias numeradas, em alguns tamanhos, assinadas, referendadas em emulsão de papel hannemuller, de “apreço operístico cantante”, digno, em suprema qualidade com ação de sobrevivência, dizem 100 anos. E são tantos, Pixinguinha, Paulinho da Viola, Ze Keti, Cartola, Carlos Cachaça, Candeia, Dona Ivone Lara, Ismael Silva, Clementina de Jesus, Moreira da Silva, Herrivelto Martins, Marina, Simone, Jamelão, Martinho da Vila, Marina, Gilberto Gil, Maria Bethania, Caetano Veloso, Herminio Bello de Carvalho, Bispo do Rosario,Tom Jobin, Chico Buarque, Glauber Rocha, Madame Satã, e tantas outras imagens ligadas as festas folclóricas brasileiras e ensaios líricos contemplando Di Cavalcanti, Oscar Niemayer, Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, e outros. Sinto-me um brasileiro comovido pela sua cultura seja musical, nas artes plásticas, pictóricas. Enfim, um glosario intencional referendando com sutileza, luz e harmonia, os pendores que substanciam com qualidade efetiva a alma deste país nas artes.
Certo dia aparece com agenda marcada no meio escritório em Copacabana, na Intacta Retina, nome formal da minha lira empresarial, uma moça de pele alva, lindo rosto, olhos brilhantes nada fugazes, e com uma voz “cantarolante”, que parecia falar ouvindo versos, cuja sonoridade se ajustava a sua configuração de puro esplendor. Queria uma prestação de serviço ---tratava-se de um convite---, em que teria de participar numa grande exposição individual, cujas pretensões orçava em torno de mais de duzentas imagens ampliadas do meu acervo de cor e preto-e-branco. Em suma, uma apresentação meritória consagrando de vez minha carreira de artista da fotografia. A mostra seria numa imensa área restrita a enormes metros quadrados, na cidade de São Luis do Maranhão, capital, na sede do Centro Cultural da Vale, e sua duração como mostra ao público seria de três meses. Foi memorável. A senhora Paula Porta, digníssima consorte do projeto, alem da função de dirigir o Centro Cultural, acumularia também as de curadora. E foi um belo projeto, uma das mais bem montadas exposições que já participei, seja no conceito, escolha das imagens e luz. Ela navegava, fluía, nos trazendo todos aqueles tempos sonhados, fomentados em ampliações fotográficas exaltando a pureza da raça, num acolhimento de fazer-nos chorar; pelos embalos concebidos em atitudes difícil de se vê. Daí o nome “ O Brasil que merece o Brasil”, nome tirado de uma canção de um autor me parece pernambucano, acho.
Na introdução do catálogo da exposição, de fino trato, conferido e publicado numa gráfica nordestina, anotei este texto cujo título era “Branco e Preto” : “Minha mãe era branca de tez, meu pai negro de pele. E desta fusão de corpos paternos sou fruto de uma mistura racial traduzida no termo PARDO em meu registro de nascimento. Fruto de Maria de Lourdes Guimarães da Silva, a Uda, e de José Baptista da Silva, meu José abençoado, guerreiro naval das batalhas infantis, que me deu a primeira máquina fotográfica, a Rolleiflex, trazida de suas viagens como enfermeiro nos navios da Fronape, que transportava óleo cru para ser refinado em Duque de Caxias.
A questão híbrida me fez pender para o lado da negritude. Tão humilhada, tão ofendida, tão ofendida, que passei a trabalhar sua imagem como uma sociedade encantada, exaltada no meu fazer fotográfico diário. Resolvi fotografa-la no trabalho, no cotidiano, nas artes, nas festas folclóricas e religiosas.
É no corpo, é na ginga, é na beleza contagiante que sou envolvido, sob a luz inebriante do meio dia. O negro é lindo! Sua força e formosura, seu desenho rígido, sua capacidade de agilizar a dança, seu olhar declaradamente amoroso fazem de si a sublimação amiga e companheira, deixando-nos enlevados em sua magia de ser.
E foi assim, transformando-os em atores da minha lira, que fotografei figuras notórias como Pixinguinha, Cartola, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Arthur Bispo do Rosário, Joãozinho Trinta, Paulinho da Viola, Jamelão, Carlos Cachaça, Grande Otelo, Pelé, e tantos outros. Uma plêiade cheia de malícia e encanto, cheia de amor.
Para uma sociedade feita invisível se faz necessário um prestidigitador. Aquele que contempla e exalta, que tira um coelho da cartola. Me fiz necessário porque sou negro e isso só me exalta e contempla. Percebi logo no inicio da minha carreira que os negros não faziam parte da “nossa sociedade”. Eram poucos, quase nada. Tirando alguns personagens da ribalta, astros do cinema ou do futebol, restavam estampados os marginais, os contrafeitores, a bandidagem, em fotos que acompanhavam fatos nada glamourosos, alguns mortos no chão pela militância no baixo mundo. Resolvi ressurgi-los como astros da minha leitura visual, cadenciando seus movimentos e articulando situações onde eles aparecessem perfumados na poesia, flutuando no ar fidalgo.
Esta me parece, será a minha missão até morrer.
O negro sublime, seu corpo exalta, sua alma enleva”.
Walter Firmo
Março 2018
Já o texto de Paula Porta, reverenciava o título da mostra, “O BRASIL QUE MERECE O BRASIL”, e se estendia assim: “A força e a resistência da cultura dos diversos povos africanos que foram trazidos para a América é algo notável, talvez o único na história das migrações, voluntárias ou forçadas.
Diante das condições de opressão e violência impostas pela escravidão, as culturas africanas não apenas sobreviveram. Fincaram raízes, criaram inúmeras estratégias de resistência, persistiram e influenciaram de tal forma, que se fizeram predominantes em diversos aspectos. Dos pequenos países, como Cuba e Haiti, aos gigantes Brasil e Estados Unidos, a herança africana foi a fonte que moldou o que há de mais original e arrebatador em suas culturas.
O reconhecimento da impressionante força e importância do negro nas Américas ainda está muito aquém do merecido e quase sempre é implícito e pontual.
Esta exposição se apresenta como um reconhecimento. Faz uma dupla homenagem: ao povo negro do Brasil e a uma de suas figuras brilhantes, um dos maiores fotógrafos do país.
A extensa obra de Walter Firmo --- que começa no fotojornalismo e vai trilhando muitos caminhos, sempre de forma intrigante --- pode ser desfrutadas sob diferentes aspectos. Mas o veio principal dessa preciosa mina de imagens é aquele destinado a negritude.
A arte, a elegância, a beleza, os saberes, a empatia, a atitude, a tradição do negro emociona o fotógrafo, que fez de sua obra a contínua exaltação de um povo.
A cor abusada, a luz intensa ou os olhos que brilham no escuro as cenas expontâneas ou construídas e a beleza de suas imagens produzem em nós uma sensação de euforia. Captam muitos significados. Impossível ficar indiferente a uma fotografia de Walter Firmo. Sua obra já faz parte do nosso imaginário, mesmo sem nos darmos conta disso. Seja porque retratou grandes figuras brasileiras para reportagens ou capas de discos antológicos, seja porque nos apresenta rostos anônimos que parecem tão familiares.
Dentre as 170 fotografias escolhidas para esta exposição, a figura de Joãozinho Trinta, esse maranhense genial que enxergou como poucos o senso estético e o luxo da alma negra, armando palcos esplendorosos para que ela pudesse brilhar.
Walter Firmo mostra um Brasil pleno de atitude, cultura, espírito e generosidade. Um Brasil que sempre ofereceu muito mais do que recebeu. Um Brasil que resiste como seus ancestrais resistiram. Um Brasil que segue sendo o que há.
Um Brasil que merece o Brasil.
Paula Porta
Curadora
Março 2018
Então, meus amigos, lembrando Cássio Vasconcellos, a maior conquista é sempre uma aspiração. Essa sagração a base de um trabalho fecundo, político ou não, mas que esteja na forja de uma consciência sabedora que todo sonho vale a pena, confirme e pontue sorvendo uma aspiração que lhe dê prazer e que aconchegue sua alma artesã.
Olhe para as estrelas e sonhe; sinta-se aquele grãozinho de areia. Saiba que, tempos depois, muito depois, vai aparecer uma estrela do mar. Ou quem sabe, você poderá se tornar um astro.
Walter Firmo
PS – Capa do pequeno livro da exposição.