"Foram dias ungidos em trevas submerso em bálsamo, que me envolvia como um oceano a proteger sua indefesa ilha, rodeado de águas mornas, tépidas qual um cobertor.Ao chegar àquele canteiro de obras ---magma a me adubar---conseguir sair vencedor de desenfreada corrida, desabalada carreira em meio a centenas de milhares companheiros, outros velocistas ávido ao vislumbre do desconhecido, fortemente ejetados como uma lavra saída de um vulcão, erecto poder exercido no fulgor de uma paixão.
Ao transpor a linha de chegada me pus quase de joelhos, assim permanecendo alguns meses numa espécie de afã religioso submetido e aguardando transformações, enrolado sobre mim mesmo, olhos cerrados e, como uma benção, ligado a um cordão umbilical a uma pessoa que seria minha mãe.Ela me guardava em seu ventre.
Já vivia, o coração batia.O bombear ininterrupto sanguíneo acalentava certa cadência a transitar por todo corpo de cima para baixo e uma coragem indeterminada me invadia engrandecendo um sentimento afetivo de coragem.
Algo a prenunciar ação psicossomática desenhando meu estado primitivo, alertava um id em plena composição.
Eu,eu,eu,eu;só eu.
O batuque compassado muscular cada vez mais forte anunciava as horas de um nascimento que estaria por vir daqui a semanas e, através de um túnel escuro e rugoso a vida se abriria, e a luz por fim, me tiraria daquele sono protegido e quase eterno.
E, ao receber a palmada do médico obstetra, ele repetiria a famosa frase do pintor renascentista que terminar sua obra sobre mármore advertiu:"Fala!!!".O primeiro choro e depois tantos outros que a vida me daria entre plantações e colheitas, acorrentado nesta "Via Crucis" chamada existência bandida que nos presenteia em outros muros e lamentações".
Toda vez que a vejo nesta fotografia obtida magistralmente pela amiga e fotógrafa francesa que registrou sua passagem e última cena gravada em imagem, lembro da minha mãe Maria de Lourdes, a Uda, escorpião disfarçada em sua fragilidade mulher, mas que me deu tanto carinho e conforto nos afetos entre afagos e beijos e, que me deixou transformado assim num ser respeitoso ao outro.
Ainda falando desta fotografia, a incrível premonição de Angelique, que movida pela estrita e muda linguagem, traduziu de forma inteligente a morte anunciada, trabalhando o espectro gradual de despedida, simbolizada na sombra o ocultamento gradual a um eclipse lunar.
Dissimulada, acho por interação, como toda mulher, a foto nos incita seu afastamento ao eterno encantamento, fortalecida no pretenso sorriso, orgulhosa mãe que parecia dizer:"Hei pessoal, por favor, preciso fazer um pipi rápido, me arranjem um banheiro aí, sou a mãe do Walter Firmo".
Ela não queria que eu fosse fotógrafo, almejava que eu fosse médico, advogado ou engenheiro, essas coisas de canudo de papel.
Mãe querida, te amo, um beijo.
Biografia
Walter Firmo Guimarães da Silva (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1937). Fotógrafo, jornalista e professor. Autodidata, inicia sua carreira como repórter fotográfico no jornal Última Hora, no Rio de Janeiro, em 1957. Em seguida, trabalha no Jornal do Brasil e integra a primeira equipe da revista Realidade, lançada em 1965. Conquista o Prêmio Esso de Reportagem, em 1963, com a matéria Cem Dias na Amazônia de Ninguém. Como correspondente da Editora Bloch, em 1967, permanece por seis meses em Nova York. A partir de 1971, atua na área de publicidade, sobretudo para a indústria fonográfica. Nessa época, conhecido por suas fotos coloridas e por retratar importantes cantores da música popular brasileira, inicia pesquisas sobre festas populares e folclore nacional. Entre 1973 e 1982, é premiado sete vezes no Concurso Internacional de Fotografia da Nikon. Fotografa para as revistas Veja e IstoÉ e, nos anos 1980, começa a expor seus trabalhos em galerias e museus. De 1986 a 1991, é diretor do Instituto Nacional de Fotografia da Fundação Nacional de Arte (Funarte). Em 1994, leciona no curso de jornalismo da Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e, desde então, coordena oficinas em todo o Brasil. Ganha a Bolsa de Artes do Banco Icatu, em 1998, com a qual vive durante meio ano em Paris. No fim da década de 1990, torna-se editor de fotografia da revista Caros Amigos. Entre seus livros, destacam-se Walter Firmo - Antologia Fotográfica, 1989, Paris, Parada Sobre Imagens, 2001, Rio de Janeiro Cores e Sentimentos, 2002, e Firmo, 2005.
Análise
O tema principal das fotos de Walter Firmo é a figura humana. Revela particular interesse pelos costumes e festas populares brasileiras, realizando ampla documentação fotográfica, na qual se destaca aquela sobre o carnaval do Rio de Janeiro. Produz imagens marcantes como aquelas de integrantes de escolas de samba viajando em um trem de subúrbio, até o local dos desfiles, salientando o contraste entre a alegria da festa e o duro cotidiano da população menos favorecida. Já na série Festa do Maracatu-Rural, 1997, retrata a população em trajes típicos, em meio a paisagens de grande luminosidade.
Ao longo de sua produção destacam-se também os retratos de músicos brasileiros, como os de Clementina de Jesus (1902 - 1987), Cartola (1908 - 1980) e Pixinguinha (1897 - 1973). É o fotógrafo que se destaca pela exploração sensível da cor e da luz, mantendo diálogo com a pintura.