A dez dias da Copa do Mundo do Brasil, manifestar entusiasmo pela Seleção Brasileira pode colocar o elemento sob maus lençóis, estando, o incauto, sujeito a ataques ideológicos de todas as frentes. É como se a torcida pelo time canarinho revelasse, em última instância, uma indiferença aristocrática em relação aos problemas sociais da nação, e quando não, pura alienação. Tenho a sensação de déjà vu, mas admito que talvez haja razões para se torcer contra...
Na Copa de 70, no auge da carnificina ditatorial tupiniquim, Médici colou a imagem do Governo à da Seleção; abraçar a equipe nacional significaria dar lastro às torturas e ao estado de exceção. Passei boa parte da minha vida num conflito interno, indagando à minha consciência o que faria se fosse nascido à época de tal patifaria. Engajar-me na luta armada, sim, mas deixar de torcer pela Seleção... Haveria sentido em tamanha traição?
É possível (e até compreensível) que muito guerrilheiro “subversivo” tenha comemorado o gol da Tchecoslováquia que abriu o placar contra nosotros, na estréia. Era um gol nos córnos do general, afinal!... Entretanto, após espetacular virada (4x1), as emoções produzidas revelaram um sentimento de leveza e êxtase que nada tinha a ver com o regime de terror imposto pelos torturadores - e quem antes torcia o nariz, passou a torcer a favor. Os militares não tomariam o que é nosso.
Enquanto o Estado era beligerante e genocida, gerador de tensão mórbida constante entre os cidadãos, Pelé e companhia eram êxtase e fantasia, motivo de orgulho puro e alegria! A conexão havia se dado pelo sentimento daqueles que se viam representados num terreno fértil de arte e inventividade, simbolizado pela técnica exuberante e envolvente do time brasileiro. A cada vitória, a lembrança de que ainda havia vida e esperança, apesar das mortes nos porões.
Nas três copas subseqüentes, esse incômodo enlace entre a então CBD (Confederação Brasileira de Desportos, que logo se tornaria CBF) e a ditadura militar sempre incomodou o torcedor; algo tirava a plenitude do prazer e do apoio incondicional. Com o fim dos anos de chumbo, a Copa de 86 traria consigo o restabelecimento de um sentimento genuíno entre a Seleção e o povo brasileiro; um amor sem amarras, livre e desimpedido. O país tirava do forno uma Constituição Cidadã e todo mundo naquele pensamento positivo de que o amanhã seria melhor, todos batalhando ‘pro dia nascer feliz’! Mas aí, o Tancredo morreu, o Sarney apareceu e o time do Telê sifudeu! Doravante, o affair entre o scratch brasileiro e o torcedor voltou a degringolar; desta feita, não só por razões ideológicas, mas, sobretudo, econômicas.
Não bastasse a ziquizira que se abateu sobre a Nova República, ainda tivemos de aturar o Collor batendo pênalti, o Lazaroni comandando a seleça e o Ricardo Teixeira vendendo a alma do futebol brasileiro ao Diabo. A principal medida adotada pelo tão arguto como moderno cartola foi conceituar e valorizar a marca “Seleção Brasileira”. Como resultado, a grana saiu pelo ladrão durante sua extensa e lucrativa gestão. O amor, no entanto, foi miando no coração da população.
Não que nos faltassem motivos; ao longo das duas últimas décadas, Romário, Robolão, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká, com inúmeras conquistas, mundiais e demais, mantiveram as ações da CBF em alta e a Seleção Brasileira nos píncaros do estrelato. Mas enquanto a marca se sobrelevava, a alma padecia. Na Era das comunicações instantâneas, o link entre a realeza do futebol mundial e seus mais abnegados súditos se deteriorava a cada amistoso disputado em campos londrinos, texanos ou médio-orientais. Vendida a sheiks, nikes, claros, sadias, itaús e gilletes da vida, a equipe atual parece uma vitrine de garotos-propaganda.
Para piorar, as televisões, insuportavelmente onipresentes, transmitem todo o cotidiano da Granja Comary em clima de oba-oba e celebritismo, transformando tudo numa Disneylândia verde-amarela e o telespectador num retardado mental ufanista. Forjam a toda hora o papel de porta-voz oficial da Seleção, paparicam o Felipão e impõem aos despreparados atletas uma amizade forçada e constrangedora. Domingo à noite, por exemplo, o FANTÁSTICO prometia “Neymar, na intimidade, como você nunca viu!”. O rapaz não podia nem olhar paras as coxas da Bruna, e lá estava uma câmera bigbrodiana a noticiar a malícia do craque evangélico.
Uma coisa é ver a rapaziada do CQC fazendo perguntas indiscretas ou arrotando intimidade junto aos famosos; outra é ver um jornalismo pretensamente sério tutelar jogador, como faz Luiz Roberto, ao chamar seguidamente de “Waltinho” o atacante Walter, do Fluminense, evocando, coloquialmente, uma pretensa empatia entre ele e o matuto centro-avante - ou àquilo que ele representa (pureza, ingenuidade, etc). Galvão, então, é o mestre dos cumprimentos juvenis e descolados, bem como daquela mãozinha paternal sobre o ombro de seus entrevistados. Ele espera que todos o tratem como uma sumidade e, dado seu ego monumental, é incapaz de reconhecer no seu interlocutor alguém de maior envergadura que ele mesmo.
O Esporte Espetacular exibiu uma entrevista de Thiago Asmar com os brasileiros que atuam no Chelsea, cheia de provocações infantis, sobre “quem é o mais falador” ou “quem tem o cabelo mais bonito”, em que se via o repórter instigando os jogadores a se comportarem como se estivessem falando à “Caras”. Houve até espaço para arrogância quando ele indagou: -“Willian, então você é o caladinho da turma?”. Deveria haver mais sensibilidade num jornalista que se vira para um ser humano tímido e manda um “caladinho”, em frente aos companheiros de profissão e às câmeras de TV, num misto de compreensão e chacota. Ele se coloca nitidamente num patamar superior ao dos jogadores que, porventura, representam a nação.
Tantos motivos, artificialismos e distorções nos levam, emocionalmente, cada vez mais para longe da Seleção, pois não nos identificamos, em geral, com a apropriação tão mercenária e padronizada de algo que nos é tão caro e seminal, como a cultura do futebol brasileiro. Tampouco queremos ver nossa paixão atrelada a imagem de uma emissora de TV "oficial". Eu não quero ser amigão do Galvão! Toleramos até mesmo que nossos clubes sejam usurpados por aves de rapina do mercado mundial, com promessas de craques, título e coisa e tal, mas quando o mesmo se dá com o selecionado nacional, aquilo que há de mais genuíno no nosso sentimento acaba morrendo, mesmo que aos poucos. Dá vontade de recolher as bandeiras...
Nisso, em nada contribui o Governo Brasileiro, em meio a tantas promessas não cumpridas, apregoar, fanaticamente, o tal #CopaDasCopas rede afora. Moro numa cidade-sede e estou envergonhado com o Governo local (do mesmo partido da Presidenta) por conta do despreparo e das “suspeitas” de superfaturamentos, desvios e corrupção, mas vejo peças publicitárias informando-me que moro no Paraíso. Em documentário exibido à semana passada pela TV Câmara (Mané de Brasília), Agnulo (apelido carinhoso do nosso mandatário) se jacta de estar construindo o “estádio mais barato da Copa de 2014”... Na boa, não tem como não se revoltar com os 1.6 BI gastos até agora, a despeito do entorno do Estádio Mané Garrincha continuar uma joça.
E então, que se dane a merda da Seleção?... Ou não?
Em meio ao desânimo e à desesperança, eis que o zagueiro David Luiz dá mostras de que nem só de bobos vive o esporte quando é indagado como seria sua “copa das copas”. A resposta, cheia de personalidade (dada a frivolidade com que a Globo costura sociologia e futebol) ecoou pela televisão de cada residência como ar fresco entrando pela janela da madrugada: - “Quero que o Brasil também seja campeão fora de campo: que nosso país consiga enxergar que também é importante que nosso povo tenha mais ajuda em inúmeros aspectos. De que adianta ser campeão dentro de campo se nossa gente não está bem?”.
À época do Tri, Tostão, por exemplo, não disse nada, apesar de se sentir envergonhado em ter de apertar a mão de Médici, no Palácio do Planalto. No contexto atual, porém, está claro que alguém que aproveita os holofotes para chamar atenção às necessidades do seu país não pode ser tratado como um alienado ou mau exemplo de cidadão. É um ídolo que fala às novas gerações sobre a necessidade de mudança da realidade social brasileira – é o “Craque-Cinema Novo”!
Não se pode, portanto, confundir a CBF e suas patrocinadoras, tampouco a mancomunação do Governo Brasileiro e da FIFA, com cada um dos indivíduos convocados para representar a população brasileira numa Copa do Mundo – a maior demonstração de congregação mundial entre os povos.
Por isso eu digo foda-se à CBF, à FIFA, aos patrocinadores, à situação e à oposição política nacional, e a todo aquele que se aproveitou para roubar a nação, e também à Joana e ao Teixeirão, mas à Copa e à Seleção, não! Não é por culpa dos jogadores e muito menos do cidadão (ainda mal instruído, mal-educado e maltratado) que o Brasil ainda seja tão desigual, atrasado e corrupto. Que sejamos hexacampeões, e que, a exemplo de David, a vitória da Seleção, em nossos domínios, expresse o desejo popular e simbolize um país menos vira-lata; um país que joga não somente para inglês aplaudir, senão para o povo brasileiro evoluir.
foto&arte: joão sassi : fonte:http://oantropolicomaltrapilho.blogspot.com.br/