A partir da Última Hora, o carioca criado “sob as estrelas suburbanas na altura do Méier”, como ele gosta de lembrar, filho único que desistiu da faculdade sonhada pelos pais porque sabia desde garoto que seu negócio era a fotografia, passou por outros grandes veículos da imprensa brasileira e conquistou diversos prêmios. Um dos principais foi o Esso de Reportagem, em 1963, por “Cem dias na Amazônia de ninguém”, publicado no Jornal do Brasil com fotos e texto seus. “Ganhei o prêmio pelo texto”, frisa ele. Ao longo de sua trajetória, Firmo tornou-se conhecido como o “mestre da cor” entre várias gerações de fotógrafos, e é autor de retratos memoráveis de ícones da música brasileira, como Pixinguinha.
“Eu fiquei sendo ‘aquele fotógrafo do Pixinguinha’”, brinca ele com a fama da imagem, feita para a revista Manchete, que mostra o músico com seu saxofone na mão, numa cadeira de balanço. Para fazer a foto, Firmo lembra que, como sempre, deixou o repórter com o entrevistado e foi checar o cenário ao redor. Viu o quintal, a árvore florida, e pediu a Pixinguinha para levar a cadeira para baixo da mangueira, sem saber se ele toparia. “Ele topou, mostrei a pose que queria e botei o saxofone na mão dele, olha a ousadia!”, conta ele, rindo. “Intuí que seria uma única foto, e numa fração de minuto fiz 360 graus, um filme de 36 poses”.
O fotógrafo também se orgulha de uma segunda imagem clicada naquele dia. “Ele já era um homem com idade, talvez não estivesse ali por muito tempo. Então peguei o saxofone e fotografei só ele, na cadeira de balanço, sob a mangueira. Isso se chama criatividade. Não se aprende, a pessoa já nasce assim, é ou não é. Ser criativo é uma coisa que te induz a sempre praticar o novo, a tentar o diferente, a trabalhar com o absurdo. Porque arte é isso, o absurdo, uma forma do espanto. Qualquer que seja essa arte, até a fotografia”.
Autodidata, Firmo fez apenas um curso, ainda bem jovem, na Associação Brasileira de Arte Fotográfica (Abaf), enquanto terminava o ensino médio. As aulas recebidas no curto período de seis meses deixaram uma marca importante na formação do fotógrafo. “Lá eu aprendi a questão da luz lateral, da projeção da sombra. Eles tinham uma compreensão, uma referência herdada da grande arte, a pintura. E trabalhar com a luz, com as vertentes de sedução, fez com que eu adotasse na minha fotografia sempre a questão da estética. Ficou muito claro em mim que a fotografia não era um flagrante, mesmo no fotojornalismo. Ela era sempre endossada pela questão da estética”.
E assim, conta ele, o “único neguinho que tinha uma Rolleiflex”, presente dos pais, foi se impondo entre os colegas. Na Última Hora, como aprendiz – chance que conseguiu graças ao saudável atrevimento da juventude, batendo na porta do chefe da redação e dizendo que em pouco tempo estaria pronto como o resto da equipe –, se apresentava para o serviço que normalmente os veteranos já não tinham mais paciência de fazer. Isso incluía registrar os famigerados buracos nas ruas. “Eu fotografava até buraco de maneira artística. Sabe como se faz isso? Eu olhava em volta, via árvores, arbustos, pegava umas folhas e jogava no buraco ou fora dele. Ali juntava as duas coisas, a informação e a estética. Mandava três fotos de praxe para a redação. Eles estavam acostumados com aquelas fotos pragmáticas, meio obtusas, e começaram a se interessar, a publicar as fotos de um cara que tinha uma maneira nova de ver a história da fotografia jornalística”.
Essa maneira nova de ver o fotojornalismo, lembra Firmo, rendeu a ele algumas inimizades, “nada grave”, de colegas que o chamavam de “cascateiro”, de alguém “que fazia um desserviço à verdade jornalística”, manipulando cenas e emoções dos leitores. “Eu pouco me incomodava. Os cães ladravam e todo mundo queria o Waltinho”, diz, às gargalhadas. “Isso me dava muita força moral, porque sabia que as pessoas gostavam do meu trabalho. Eu mostrava uma outra vertente, uma outra verdade. A verdade nunca é uma só, há vários tipos”.
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O fato é que Firmo tornou-se de fato um mestre, que se profissionalizou tendo como mestres colegas como José Medeiros, alguns anos mais velho, de quem se tornou amigo. “Eu queria ser o Medeiros, que ia para a Serra do Roncador, para Nova York, Paris, queria ter aquela vida ativa, e não ficar só atrás de uma mesa. Ele foi certamente um cara que me influenciou a pertencer a esse mundo da fotografia.”
Não demorou muito para que o jovem Firmo começasse a percorrer o Brasil, como Medeiros, registrando cantos muito diversos do país. Aos 26 anos ganhou o Esso com a reportagem sobre o Rio Amazonas sugerida por ele, influenciado pela origem de seu pai, nascido “numa das palafitas à margem direita do rio, na altura de Monte Alegre”. O fotógrafo botou na cabeça que precisava “fazer uma reportagem romantizada sobre aquela região”, conta. Com o Jornal do Brasil sem verba para bancar os custos da viagem para um repórter e um fotógrafo, Firmo se ofereceu para também escrever. E acabou conquistando um dos principais prêmios da área jornalística, ficando nacionalmente conhecido. Como sempre visitava a região acompanhando o pai, alguns anos depois ele fez novas fotos e ofereceu à revista Realidade, então comandada por Mino Carta, que acabou publicando 12 páginas sobre o assunto.
As viagens pelo Brasil também renderam belas imagens de festas populares, outro dos temas caros a Firmo. A trabalho ou por conta própria, ele eternizou em cores vívidas a Cavalhada de Pirenópolis, em Goiás; o Bumba-meu-boi, no Maranhão; a festa de São João Cachoeira, na Bahia. E, claro, o carnaval carioca, mostrando não apenas o brilho na avenida, mas acompanhando também o trajeto menos glamouroso dos integrantes das escolas desde o subúrbio até os desfiles. No meio do caminho, o olhar sensível do retratista primoroso ainda pescava pérolas como a senhorinha carregando um arranjo de flores de papel crepom, nas ruas de alguma cidade da Chapada Diamantina, na Bahia, em 1967. “Foi minha primeira viagem para lá, não me lembro mais o nome do lugar. Estava andando e encontrei essa senhora com toda aquela dignidade, levando as flores de papel crepom. Me emocionei, porque era a visão de um Brasil tão antigo, até para aquela época”, lembra Firmo. “Me identifiquei para ela, trabalhava na Manchete na época, e a senhora simplesmente parou para a foto, não falou nada. Peguei uma grande angular, 28 milímetros, fiquei ajoelhado para que a imagem dela subisse, e fotografei. É uma das fotos de que mais gosto em todo meu trabalho. Pelo simples, pela coisa honesta, pelo recado. É um relicário de um Brasil que se foi, acho que não existe mais isso”.
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O arquivo de festas populares registradas por Firmo também foi bastante ampliado desde 1992, quando ele se tornou professor de fotografia e passou a viajar com os alunos pelo país. O fotógrafo também correu o mundo, e chegou a ser correspondente da Editora Bloch em Nova York por seis meses em 1967. Em 1990, estava em L’Aquila, na Itália, acompanhando a apresentação de artistas brasileiros (Caetano, Gil e Chico Buarque, entre outros) na cidade. José Medeiros, que fazia parte do grupo de fotógrafos a trabalho, morreria ali depois sofrer um enfarte – o terceiro, depois de um em Havana e outro no Rio. “A gente tinha muita intimidade, nos tornamos amigos, de fato. Ele fazia muita brincadeira, me chamava de Maria Firmina”, lembra Firmo, que se emociona ao lembrar o episódio. “Ele se sentiu mal à noite, mas de manhã estava bem, brincando. Saí para comprar um tripé em Roma, que é perto, e quando voltei fiquei sabendo que ele havia morrido. Dois dias antes ele queria trocar para dormir no meu quarto, disse que o colega dele roncava muito”.
Espantando a tristeza, Firmo começa a manusear algumas das numerosas fotos de personagens da música brasileira que posaram para suas lentes, compondo o que talvez seja sua faceta mais conhecida. Aparecem ali Gal Costa exuberante; uma jovem Marina, com 18 ou 19 anos; Fafá de Belém recém-chegada do Pará, esbanjando brejeirice. “Ela passou uma tarde inteira comigo na Floresta da Tijuca. Uma menina quase, sensualíssima”, recorda. Há Dona Ivone Lara sorrindo tímida no meio das fitas coloridas que serviam de divisória entre a sala e a cozinha de sua casa. “Fotografei-a para a Manchete. Tive a ideia quando ela foi para a cozinha fazer um café. Quando ela voltou eu disse que já tinha a foto na cabeça. Ela não queria, falou que a cortina era muito feia, foi uma conversa demorada. Acho a foto magnífica. Gosto muito de trabalhar essa coisa que o pessoal chama de kitsch, né?”
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Está ali também Cartola em pleno desfile da Mangueira, no carnaval de 1963, numa das muitas fotos que Firmo fez do grande sambista. “Não quero dizer que fui amigo dele, mas eu tinha intimidade, pedia uma foto e ele nunca disse não, acreditava em mim. Foram uns bons 15 anos assim”. A desenvoltura no universo do samba, aliás, o fotógrafo credita a dois “padrinhos”: os jornalistas Sérgio Cabral e Hermínio Bello de Carvalho. “Eles foram meus pombos-correios na minha atividade como fotógrafo da musicalidade, que muita gente gosta. Andei na aba deles durante muito tempo, me ajudaram muito.”
A poucos meses de completar 82 anos, em junho de 2019, Firmo segue com a mesma energia que alimentava os sonhos daquele menino de subúrbio. No final de 2018 passou um mês em Paris exercitando a fotografia em preto e branco, um desafio que o mestre da cor sustenta ainda não ter dominado totalmente. “A linguagem do preto e branco é uma coisa, a da cor é inteiramente diferente. Cada um tem sua doutrina particular, e o preto e branco é muito mais difícil. A cor é a banda de música, uma zoadeira. O PB é uma sutileza, mais dos sentidos”, compara ele, que não dá qualquer indício de aposentadoria das lentes. “A impressão que eu tenho é que quando fotografo estou tomando um tonificante de vida, de energia. A maioria dos fotógrafos é muito longeva, passa dos 80 quase sempre, pode ver.”