Poetas de Brasilia: Júlia Moura.

14/06/2017 09:41

Foto do perfil de Júlia Moura, A imagem pode conter: 1 pessoa, close-upFaz parte do Coletivo Assum Preto.Acesse:www.facebook.com/julia.moura.311

quanto mais eu observo pela janela do ônibus
mais eu sei do disco voador
que habita meu peito

têm umas oito mulheres abduzidas por aqui
uma esperneia entre meus dedos
minguando o resto da lua que não foi
outra se enrola no meu joelho
e não larga o osso
que nem existe mais
tem uma descabelada tentando 
manobrar as duas covinhas das minha costas
ganhei uma por vez que amei
as paixões se acumulam e ardem
num sinal no meio dessas covinhas
e as outras cinco dançam sem parar
como se meu sangue fosse
uma substância estimulante
de não sei o quê

pardais pairam nos
fios elétricos
e roubam meu fluxo de consciência
voam sem vaidade e moram
em paraísos que proíbem mentes
inanimadas de funcionar
um corpo arrebatado no trânsito
um gosto arrebentado em transe
um ventre estilhaçado transeunte
e carros carcomidos em alta
velocidade que não param de passar
tentam juntar cacos reunir lascas
construir casas
e sempre morrem na praia

dizem que Hilda Hilst levitava
em volta da figueira de sua casa
e que as estrelas saiam do lugar
são só especulações
eles dizem
não estão preparados pro caroço
do delírio
fingem comer o fruto o mesocarpo
a massa
mas os dentes estão amaciados 
massageando coisas sempre
prestes a explodir
poesia afia o dente
e desnuda o paladar

o vento sempre levanta a saia
das coisas irrefutáveis
mas muitos preferem não olhar

quanto mais eu observo pela janela do ônibus
mais eu sei do disco voador
que habita meu peito

 

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arrepia a mente deixar vontades no altar. há uniões sagradas que não aceitam atraso mas por que insistes em dedilhar-me os instintos? vivo para reinventar o hiato das respirações. os corpos conversam e a língua que ocupa-se em comunicar falha na missão existencial. o silêncio é um mantra que envolve pessoas e madrugadas. a terra não é quadrada! não há queda depois do fim. bem-aventurado o poeta que tira leite da pedra dos começos. exorciza o silêncio e faze-o falar de uma vez o segredo do encantamento. heresia é usar métodos. olhar pro chão e deixar escapulir uma porrada de porquês dos olhos. aconselharam-me com amor: olhai sempre para o céu. ao céu. do céu. de lá que escorrem as coisas absurdas. são novas toalhas para pequenas e velhas mesas grandes. pés descobertos não impedem o sono mas freiam o gozo. Deus tenha piedade dos que acostumaram-se com pés descobertos. com metades o dia amanhece. mas por metades a vida aparece? motivo. dê-me colares que hei de inventar novos signos. vida longa castradora de apogeus. vive-se bem quem vive no cume sambando na borda. Mautner cantou-me: “escorregue para não cair”. há um bocado de verdades infiéis que fingem ir embora. belezas orbitam pessoas curiosamente insaciáveis. os mistérios da natureza estão sedentos e aguardam impacientes por quem os extraia. toda calmaria guarda uma mar de irreverência. a maioria das coisas são mais conciliáveis do que parecem ser. mulheres carregam algo que o mundo tenta abafar há séculos. não conseguem. uma flor entre as pernas e um ventre geravida. não é pouca coisa isso de intuição primitiva. despretensiosa. de um tempo pra cá deram nome à inquietude que sempre existiu entre essas mulheres. teorizam e falam disso nas redes sociais. vovó cantou essa pedra faz tempo. ritualisticamente escute sua alma e entenda a fome do seu espírito. fingir que as coisas reais podem ser vistas é se boicotar. adia a plenitude quem fecha os poros. atentai o peito para as coisas anárquicas que gritam e denunciam. estrangulai máquinas e bancos com a ponta dos pés. o vento lírico abarulheia penduricalhos ultrapassados da mente. desfazei do que não cabe mais. o que expande nunca torna ao mesmo lugar. além de algumas pernas, nada é feito sob medida. acostumai os olhos com a assimetria. versos desconexos revelam. poesia à revelia.

 

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Obsceno é o pássaro furioso 
Que corta o ar no meu peito
É a porta que nem existe
É a mania de bater nessas portas
É a palavra polida cintilante lustrosa 
Nos obrigando a estimulá-la com
Penas mulas foices piscadelas 
Para assumirem que são
Opacas embaçadas foscas 
E que todos os instrumentos
Cortantes cabem dentro delas
Até seu olhar desequilibrado
Ainda mais o seu olhar desequilibrado
É o céu manga rosa nos fins de tarde
Relembrando purezas e imoralidades
Ao mesmo tempo

Ontem eu vi um carcará na
Esplanada dos Ministérios
Absurdamente obsceno
Afrontando os três poderes
Com sua própria existência
Como eu queria que os fura-greve 
Tivessem visto o que vi
Entenderiam o que nenhum militante
Conseguiu explicar
Por diversas vezes a palavra é inútil
A não ser que seja obscena como
um carcará na esplanada em dias
de greve-geral.

29/04/2017

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se o amor está no pássaro
abocanho o céu
animal devoradora de coisas quentes
amor que não queima nem arde
é tão morto quanto o sorriso dos
comerciais de margarina
como se pudesse o fogo amaciar cabelos
em cafunés de dedos vulcânicos
como se o sangue de quem ama não fosse
larva em estado de destruição
como se a pele não flamejasse diante
do formato caótico dessa boca que te
engole
como se viéssemos de cegonhas e 
mães virgens
como se não fôssemos animais mal adestrados
sempre prestes a explodir quando o
amor se aproxima.

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 um poema não polido

gritado/bruto/desesperado 
cheirando a rua
ardendo os olhos
incendiando o ventre

a fragilidade do resto da República
e a chama imprescindível 
das latas de lixo

o último suspiro em fogo
e a transgressão que queima
esperança nos corpos

um poema-povo fatigado
costurado em ruínas
em cada milímetro dessa fotografia.

Foto: Ivaldo CavalcanteA imagem pode conter: fogo

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