SOBRE A PESQUISA
Desde 1998, a antropóloga Lena Tosta (PPGAS/UnB -
Bolsista do CNPq) e o fotógrafo Olivier Boëls
pesquisam juntos na Índia com sadhus, conhecidos
na literatura como santos ou ascetas hindus. A primeira
produção etnofotográfica desta pesquisa,
intitulada Cinzas Sagradas, recebeu o prêmio Pierre
Verger de Antropologia Visual de 2002. Totalizando 11 meses
de pesquisa de campo com uma nova incursão em 2006,
buscamos aprofundar diálogos com nossos interlocutores
sobre a contemporaneidade como eles a percebem, Kali Yuga.
Kali Yuga
Nagas e aghoris são linhagens de sadhus conhecidas
por integrar à experiência do sagrado o contato
deliberado com tudo o que é proscrito, o ‘profano’
da hegemonia bramânica. A morte, o sexo, a intoxicação,
a violência, a carne humana e os socialmente excluídos,
em vez de afastados em nome da pureza, são incorporados
às práticas espirituais.
Kali Yuga, nossa atualidade de fragmentação
do conhecimento, aceleração de ritmos e enaltecimento
da sensorialidade é a “era das trevas”, uma época
de confusão cognitiva e deslizamento de sentidos.
Inspirados nos aspectos mais transgressores de Shiva, sadhus
nagas e aghoris encarnam o trickster em Kali Yuga, herói
dissidente que restabelece a harmonia do cosmos ao desafiar
a ordem de um universo fenomênico decaído.
Assim, contextualizada na relatividade de Kali Yuga, estes
sadhus reforçam uma percepção de “Hinduismo”
como um sistema aberto e plural de práticas voltadas
para a construção de uma olhar não-dualista.
A maestria sobre o tempo permite
transpor os limites de jiva, a “consciência” socialmente
individualizada, submetida a ordens biológicas
e sociais contingentes – entre elas a morte - pela sua
própria ignorância. |
Alguns preferem seguir “atalhos”
para a liberação: Maharaj Amar Bharti
é um dos últimos praticantes vivos da
“austeridade” urdhva-bahu, ele mantém o braço
direito erguido há três décadas.
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Através de sua “lente
tântrica”, Hari Bharti lança um olhar
sobre a “era da ignorância”. |
Ao recapturar o estado atemporal
de indiferenciação anterior à
cosmogonia do mundo fenomênico, o praticante
vence toda ilusão de alteridade. Em tal estado,
os seres percebem-se não apenas como iguais,
como na utopia humanista, mas como o mesmo, Brahman.
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Não-dualidade com uma
pitada de humor: rosário e cigarro são
ofertados ao “lingam sagrado”. |
Vestido com o manto que cobre
os mortos, Sundaram Aghori Baba é servido chá
no seu kapal de crânio humano. |
Aghori sadhus como Kitcheri
Baba ingerem substâncias consideradas “impuras”
e “perigosas” pela ortodoxia hindu: álcool,
excrementos, venenos ou, neste caso, carne humana.
Ele deixou o campo de cremação de mãos
dadas com as crianças locais. |
Rajeshvar Ram reformou as práticas
de sua linhagem aghori; aboliu a simbologia de enfrentamento
da morte para buscar contato direto com outra “alteridade
extrema”, a sociedade na era de Kali. |
Tendo sido impedidos de freqüentar
este templo Shivaista por poderosos Brâmanes,
sadhus nagas rogaram-lhe uma praga. Desde então,
o templo tem afundado lentamente no Rio Ganges. |
Para um olhar não-iniciado,
o ritual do dhuni pode parecer um simples encontro
social em que sadhus conversam, fumam e tomam chá.
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Longe da solitude, Maharaj Amar
Bharti cumpre outro voto, o de professor. Suas lições
“mântricas” - 14 horas diárias de discurso
quase incessante - estão permanentemente abertas
à comunidade. |
Vivendo ao lado de um campo
de cremação, acompanhado apenas de suas
três caveiras, Satyanand Giri é um aghori
que surpeende: mantém uma dieta “pura”, faz
serviço social (seva) e não perde a
novela “Eu quero ser Miss Índia”. |
Atuando como propiciador de
forças criativas, Mahadev Satyanand Giri pode
ser considerado um xamã. |
Cheio de ambiguidade, a performance
de um sadhu no “mercado” é constantemente avaliada
para determinar sua autenticidade. |
O Samadhi de um irmão
Bharti foi considerado auspicioso: o naga sadhu deixou
o corpo na “noite de Shiva”, em território
sagrado shivaita, o Monte Girnar. Fotos de partes
do ritual funerário foram feitos a pedido da
família. |
Se a iniciação
é um rito funerário, a morte de um grande
mestre significa a liberação do ciclo
de vidas e mortes. |
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